ABRUPTO

23.10.06


NUNCA É TARDE PARA APRENDER:
MAMBO JAMBO, POESIA, FEMINISMO, TROCAS E MEINKAMPF LOOK

Break, Blow, Burn: Camille Paglia Reads Forty-Three of the World's Best PoemsCamille Paglia é um típico produto da Universidade americana. A Universidade americana não dá só MITs dá também alguns dos melhores departamentos literários do mundo, sendo os outros igualmente anglo-saxónicos. Mesmo quando há muito mambo-jambo francês nas universidades americanas, e o estruturalismo mais Derrida, Foucault, Lacan e Deleuze invadiram a academia literária, não parecem tão franceses if you know what I mean… Paglia tinha tudo para ser desta escola, a que somava as inconveniências da persona pública, mas o fundo, como era sólido, vem ao de cima. A mulher-harpia está lá, com a mistura de generalizações provocadoras e cénicas que dão público, mas também está a melhor escola, uma atenção à leitura do texto, um entusiasmo culto pela palavra e o seu arranque do meio das outras palavras para dar origem a um poema.

Em Break, Blow, Burn, a aluna de Bloom defronta-se com o cânone, com a necessidade do cânone:
At this time of foreboding about the future of Western culture, it is crucial to identify and preserve our finest artifacts. Canons are always in flux, but canon formation is a critic’s obligation. What lasts, and why? Custodianship, not deconstruction, should be the mission and goal of the humanities.
Cá está a frase-chave: “Custodianship, not deconstruction, should be the mission and goal of the humanities.” Longe dos franceses, perto da “literary education” de tradição anglo-saxónica. Simplifico, como é óbvio. Não é que Paglia não mergulhe fundo nas fontes do mambo-jambo, em particular numa leitura psicanalítica agressiva tão ao gosto discursivo da crítica francesa, mas fá-lo respeitando mais o valor das palavras originais do que perdendo-se no próprio discurso da crítica.

Fiel ao texto, perto do texto, presa pelo texto, não pela análise do texto. Break, Blow, Burn, título pagliano, é uma análise de 43 dos “melhores poemas do mundo”. Paglia explica as razões pelas quais só escolheu poemas escritos em inglês, e as razões são aceitáveis para evitar que o seu texto, rasando os poemas por perto, se enredasse nos problemas da tradução. É verdade que alguns dos 43 poemas estão longe de ser os “melhores poemas do mundo”, mas isso é pouco importante porque servem a consistência da leitura idiossincrática de Paglia.

Dois exemplos em que Paglia brilha com a sua luz própria, ao mesmo tempo Paglia, a feminista e Paglia, a crítica: os comentários ao poema de William Carlos Williams This is Just to Say (que já apareceu num Early Morning Blogs) e Daddy de Sylvia Plath (que nunca apareceria num Early Morning Blogs, porque não se alimenta o inimigo, a filha do "daddy"). O poema de William Carlos Williams parece incomentável, na sua absoluta simplicidade, mas Paglia mostra a complexidade, o mundo denso de relações entre os sexos, o espaço doméstico, a proposta do poema, a sua chantagem afectiva, a sua troca invisível de favores e serviços: “hence the “delicious” fruitness of the final images has the tactile lushness of a kiss”.

Em Daddy, que Paglia considera um dos poemas fundamentais do século XX, e é capaz de ter razão (não sei bem julgar porque quando reli o poema neste livro ele soou-me mais “fundamental” que antes, mas tinha 160 páginas de Paglia por trás…), poema, autora e leitora encaixam tão perfeitamente que estas páginas são as que mais transportam um pathos comum. A raiva pura que emana do poema, as suas injunções insultuosas
I made a model of you,
A man in black with a Meinkampf look
ou
Every woman adores a Fascist,
The boot in the face, the brute
Brute heart of a brute like you
até ao final
Daddy, daddy, you bastard, I’m through.
servem às mil maravilhas para Paglia mostrar o melhor e o pior da sua análise, a densidade do significado (este “bastard” ainda tão pouco vulgar na boca de uma mulher no ano em que foi escrito) , o mergulhar do poema em todas as histórias fundadoras da psicanálise, como num catálogo freudiano dos complexos, e até o mau gosto kitsch da comparação final “I nominate Sylvia Plath as the first female rocker”.

Se há qualquer coisa semelhante a um cordão umbilical paterno, o poema corta-o, mas como Paglia nota, quem o corta diante da rapariguinha que ama/odeia o pai, infantilizado no “Daddy” é o próprio pai, o agressor em acto, aquele para quem a força está do lado do Homem e para quem todas as mulheres serão sempre o objecto da violência sexual: “Daddy, daddy, you bastard, I’m through”. Estava. Meteu a cabeça num fogão, na cozinha, lugar da mulheres, como nota Paglia. Parece um quadro de Paula Rego, é o mesmo mundo.

Está lido.

*

Faço assim a minha estreia neste espaço a propósito do seu tópico sobre o último livro de Camille Paglia, dado que a minha experiência recente nos departamentos literários americanos não podia ter sido mais dissonante daquilo que escreve sobre a sua "excelência". Fui durante o ano de 2005 uma visiting scholar junto do Departamento de Literatura Comparada na Universidade de Yale e não posso deixar de manifestar o meu profundo desagrado pelo que lá assisti.

Ao contrário do que sugere, as Humanidades americanas estão completamente hegemonizadas pelos autores do "pós-estruturalismo" francês (diga-se que isto já nem em França acontece, dado que lá agora dominam as análises "sistémicas", inspiradas em Pierre Bourdieu ou Niklas Luhmann), de tal modo que são rejeitadas à partida todas as abordagens que não se basearem no eixo Lyotard/Derrida/Deleuze/Foucault ou aparentadas, como os estudos "culturais", "de género" ou "pós-coloniais". Existe uma enorme diferença entre as liberdades concedidas a uma professora universitária como uma carreira consolidada (é o caso de Camille Paglia, e nem ela escapa a um determinado tipo de observações absolutamente gratuitas) e as restrições extremas colocadas aos scholars mais desconhecidos. Por outro lado, ao contrário do que escreve no seu tópico, os estudos literários nas universidades americanos são particularmente theory-centered, de tal modo que a esmagadora maioria dos artigos que os pós-graduandos entregam no final dos semestres incidem sobre os problemas do "discurso da crítica" e não sobre as "palavras originais" do texto.

Para além destes tabus metodológicos, existem outros que se me afiguram ainda mais difíceis de compreender: constatei, por exemplo, com surpresa que as obras incluídas nos programas eram estudadas com base nas suas traduções em Inglês e que a consulta do texto original era quase sempre desencorajada. Poderia apontar ainda mais problemas, mas não quero ser fastidiosa.

Os departamentos literários americanos não são excepção à ameaça de extinção gradual que pesa sobre estes departamentos nas universidades do mundo inteiro. É visível, pelo número de publicações e de alunos inscritos, que os Estudos Literários são neste momento uma disciplina universitária em clara decadência, cujo futuro é, para ser eufemista, sombrio. É com pesar que o digo (porque esta é a minha "camisola"), mas é uma verdade que entra pelos olhos dentro, e uma boa parte da responsabilidade por este estado de coisas não deve deixar de ser imputada às universidades americanas.

É verdade que cada um é livre de ter o juízo que quiser sobre a qualidade do ensino das Humanidades nas universidades americanas, e não creio que a minha opinião vá mudar a sua (ou a dos outros leitores). Mas fique claro que "nem tudo o que luz é ouro".

(Regina Lopes)

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© José Pacheco Pereira
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