ABRUPTO

2.10.06


A FAVOR DA TURQUIA

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No dia 1 de Janeiro de 2007, mais dois países, a Roménia e a Bulgária, vão entrar na União Europeia. Ao mesmo tempo que confirmava esta data para o acesso dos dois países do Leste europeu, Durão Barroso adiou mais uma vez a esperança da Turquia de aceder em prazo razoável à União Europeia. As duas decisões são completamente contraditórias na sua lógica, a primeira certa mas cheia de ambiguidades, a segunda clara mas completamente errada.

Qualquer pessoa que conheça minimamente a Bulgária e a Roménia sabe de ciência certa que nenhuma das duas, mais a Roménia do que a Bulgária, está "preparada" para aceder à União Europeia, se os seus critérios de adesão fossem tomados a sério. A verdade é que já não o foram na última vaga de adesões, mas sim esticados até limites puramente formais para que, procedendo a rearranjos formais, alguns países pudessem entrar. As questões complexas que traduzem a história turbulenta do Centro e Leste da Europa, assim como a herança do comunismo permanecem longe de ser resolvidas. Algumas dessas questões, envolvendo nacionalidades, direitos de minorias, fronteiras contestadas, direitos individuais, independência do sistema judicial, sobrevivências de mecanismos totalitários de governo, menorização das oposições, desigual acesso aos meios do Estado, corrupção institucionalizada, com maior ou menor grau, existem em muitos países da antiga cortina de ferro. O que é que aconteceu à importante minoria russa na Letónia cujos direitos eram violados pela legislação sobre a língua e o emprego do Estado, discriminatória a favor dos falantes em letão? Este é apenas um exemplo dos muitos problemas a que se deu uma solução formal, para garantir a adesão, mas que efectivamente se varreram para debaixo do tapete. A Roménia e a Bulgária tem muitos destes problemas e mais alguns oriundos da maior pobreza relativa.

Apesar disto tudo, é positivo que a União Europeia inclua estes países no seu seio, dando-lhe mais oportunidades para prosperarem economicamente e funcionando como uma poderosa força de pressão para impedir os desmandos a que a herança do comunismo e os processos de transição, ou apenas o retornar de histórias nacionais antigas, poderiam levar. Só que me parece bem que se tenha consciência de que só entram, mesmo sem as condições cumpridas e ainda com um longo caminho pela frente, por puras razões geopolíticas.

Ao mesmo tempo convém abandonar a ilusão de que a sua entrada favorece a "integração" europeia, que de há muito está emperrada, em parte porque não se soube lidar com a realidade posterior à queda do muro de Berlim. Eu, do mal o menos: prefiro uma Europa mínima assente numa geopolítica da paz, que por sua vez assenta numa comunidade de bem-estar económico, do que Europa nenhuma. Ou seja, caminha-se para "unificar" a Europa e não para a "integrar". Também penso que valia a pena aos países fundadores da União, e que foram os seus motores, perceberem que a Europa que existe de facto é bem diferente da que se começou a fazer até Maastricht. Essa, a sua retórica vanguardista deitou-a a perder nos últimos dez anos e não volta tão cedo. E ou aceitam o que há, e trabalham a partir do que há, ou acabam por perder tudo.

Numa Europa mínima tem todo o sentido fazer entrar a Roménia e a Bulgária, mas se a Europa fosse "máxima", tivesse a unidade política, económica e social integrada que a utopia constitucional desejava, não teria. Quando se aceitou o alargamento apressado que culminou em 2004, decidiu-se por meras razões geopolíticas impedir que o Centro e Leste da Europa ficasse uma terra de ninguém entregue à pobreza, aos seus fantasmas do passado e à vizinhança perigosa de uma Rússia que Putin cada vez mais aproxima da política externa que foi a dos czares e a dos comunistas. E decidiu-se por essas razões porque já nessa altura se tornava evidente que a União Europeia não estava disposta a pagar o elevado preço de um processo de adesão a sério, mais lento, testado e caro, e isso se devia a que o impulso para um upgrade político era demasiado superficial, voluntarista e pouco adequado às realidades das políticas nacionais.

Depois, a um erro somaram-se muitos outros: a fuga em frente da Constituição europeia, a retórica da PESC, o gabanço de uma Europa mais economicamente desenvolvida que os EUA em 2010. E a assunção de uma política gaullista da Europa como superpotência destinada a contestar o palco mundial dos EUA. Tudo políticas profundamente erradas, que deixaram tornar o chamado "modelo social europeu" num mecanismo de bloqueio económico e social que gerou proteccionismo, que fracturaram o eixo transatlântico e que produziram uma política externa tão politicamente correcta como ineficaz. Hoje continuamos a não entender que a única Europa que funciona é a mínima e essa devia ser preservada antes que se estrague e que a "máxima" só traz caos e tensões, e nem sequer é hoje minimamente factível.

É por tudo isto que é um erro gravíssimo estar a criar dificuldades à adesão da Turquia nesta Europa mínima, a única que existe e funciona. A adesão da Turquia tem a mesma lógica da que vai aproximando a UE das fronteiras do continente, fazendo-a parar na Federação Russa, com a vantagem de a levar a outras fronteiras cuja instabilidade também afecta a Europa, as do Médio Oriente. É verdade que a Turquia tem graves problemas, alguns dos quais semelhantes aos de outros países no Leste europeu e outros que são uma sobrevivência da complexidade da sua história do século XX, em particular graves questões de direitos humanos relacionados com a questão curda. Mesmo para essa entrada numa Europa mínima, estes abusos devem ser controlados e eliminados, mas não se conhece outro dissuasor do que a manutenção da esperança da adesão na UE.

Depois há a vexata questão, a de ser um país maioritariamente muçulmano. É verdade, mas também é o único grande país muçulmano no mundo (em parte a Indonésia também) em que existe separação entre a religião e o Estado e este é laico, nalguns aspectos agressivamente laico. O nosso problema com a Turquia é que aquilo de que gostamos na Turquia, o Estado laico, assenta naquilo de que não gostamos, o papel constitucional do exército, herança das simpatias de Ataturk pelo nacionalismo de génese europeia e os totalitarismos dos anos 30. Uma revolução imposta a pulso de ferro, mas que criou um sistema de equilíbrios único.

Resolvidos esses problemas, há que lidar com a dimensão da Turquia de forma positiva, como benéfica para a paz da Europa. A Turquia não é um pequeno país, é uma potência regional, com uma área de influência que se estende das repúblicas centro-asiáticas até à China. E, para além disso, entra para a UE um dos poucos exércitos credíveis existentes na Europa. Também pode fazer diferença. Para a estabilidade da Europa, precisamos da Turquia e da Turquia do nosso lado. Pode ser até que a sua entrada na UE gere uma dinâmica mais favorável a uma retomada de um caminho político, mais lento, prudente e seguro. Exige-se senso e olhar grande sobre a geografia, a história e a política. Senão, damos por nossa iniciativa um eficaz passo para a "guerra de civilizações" que todos esconjuram, mas não praticam.

(No Público de 28 de Setembro de 2006)

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