ABRUPTO

26.10.06


COISAS DA SÁBADO: REFORMAS OU DINHEIRO PARA DIMINUIR O DÉFICE?



Como todas as avaliações finais são supostas serem feitas no momento do exame, quando de novas eleições, pode-se sempre estar a julgar erradamente quando se avalia a meio. No entanto, penso não me enganar repetindo aquele que me parece ser o mais clamoroso erro do governo, mas também de quem lhe bate palmas a mais ou o exorciza totalmente. Está o governo a fazer reformas de fundo ou apenas a traduzir medidas pontuais que “tem” que tomar para controlar o défice numa retórica de reformas? Esta parece-me ser a questão central para avaliar o governo Sócrates.

O pano de fundo da questão tem a ver com as condições excepcionais de governabilidade que este governo tem: maioria absoluta, partido socialista domado pelo poder, oposição muito enfraquecida, consenso alargado na opinião pública muito para além das fronteiras partidárias. Ter tudo isto em Portugal é um milagre, pelo que se espera que o miraculado mostre excepcionais virtudes. Depois, para além do pano de fundo, há que julgar a linguagem e as medidas concretas, a retórica política e a capacidade de realização, e fazer um balanço.

A retórica política do governo é reformista-autoritária, associada a progressivista-tecnológica. Usando estes pares de conceitos consegue-se perceber quase tudo do governo Sócrates. Deixo aqui o lado progressivista-tecnológico e fico pelo primeiro par, o reformista-autoritário e a retórica respectiva. Aqui, analisando medida sobre medida, é óbvio que o que se pretende a muito curto prazo é controlar o défice, cortar onde for preciso e arranjar mais dinheiro. É isto que tem sido considerado reformista na acção do primeiro-ministro e merecido um apoio mais vasto do que o do PS ao governo.

Ora, é aqui também que me parece dever-se ser muito prudente, porque se há de facto medidas com o objectivo de cortar dinheiro, associada a medidas ainda mais duras, para arranjar mais dinheiro, não parece que se vá para além da emergência pontual, numa via que não devia ser chamada de reformas porque o não é. Fica aliás a suspeita consolidada de que, se não fosse o aperto financeiro da União Europeia, o governo socialista procederia de forma bem diferente. Basta ver as medidas que podiam ser tomadas e não o foram nem são, como as ligadas a uma reforma mais estrutural e menos conjuntural na segurança social, ou a intocabilidade de alguns monstros como as SCUTs, para se perceber que não há um plano reformista de conjunto, mas sim medidas pontuais cuja eficácia está por demonstrar para além do muito curto prazo.

É por isso que a retórica governamental encalha quando defronta adversários que tem poder para resistir, como acontece com os autarcas. O governo bem pode valorizar os méritos estruturantes da nova legislação sobre as finanças locais, que os autarcas não têm dificuldade em desmontar aquilo que são estratégias para poupar e que seriam mais facilmente aceites se não fossem envolvidas numa retórica reformista-autoritária. O problema é idêntico na saúde e na educação, pelo menos em parte. Se a retórica fosse de emergência nacional, dizendo com clareza que as medidas se destinam a resolver um problema urgente de adequar as nossas despesas à imposição do défice, as pessoas aceitariam mais facilmente porque as faziam participar num sacrifício colectivo. Aí haveria apenas que mostrar que a crise é para todos, para o que também há um retórica própria que o governo conhece bem porque a ensaiou.

Assim, as pessoas são confrontadas com falsas reformas apresentadas como sendo contra “eles”, como sendo virtuosas e salvíficas, quando todos percebem muito bem que se destinam a apenas a obter mais poupanças ou mais dinheiro à custa não só do seu pecúlio como da sua imagem profissional e pessoal. E isso valeria a pena se se tratasse efectivamente de domar fortes corporações, para fazer uma nova configuração da relação entre o estado e os cidadãos, o que manifestamente não é o caso, porque quase tudo vai ficar na mesma, embora mais pobre e mais zangado. Mas foi este o caminho que Sócrates seguiu desde o início e que começa agora a mostrar os seus efeitos perversos.

(Na Sábado de 18 de Outubro.)

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© José Pacheco Pereira
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