ABRUPTO

22.9.06


O QUE É QUE NO DISCURSO DO PAPA INTERPELA O ISLÃO?

Assistimos, hoje, à formação de um mecanismo de censura prévia que se acciona sempre que se falar, seja qual for o modo de se falar, do islão, de Maomé, do Alcorão. Agora foi o Papa, por ser o Papa e por ser o símbolo do mundo "dos cruzados". Nós estamos sempre a minimizar a dimensão religiosa do conflito, mas não somos correspondidos pelos muçulmanos fundamentalistas. Para eles, nós, mesmo que sejamos ateus, agnósticos, indiferentes, não praticantes, ou exactamente por isso, somos "cristãos" em guerra santa. Que melhor imagem para personificar os "cruzados" do que a do Papa, queimado em efígie numa capital árabe como se fosse um cavaleiro templário, com a cruz de Cristo das armaduras sobre as vestes brancas? Muita história, demasiada história.

Na sua conferência académica de Ratisbona, o Papa sabia exactamente o que queria dizer, mas ninguém pode hoje saber como vai ser ouvido. O ruído é, pela sua natureza, impossível de prever, caótico, e nem um Papa tem a omnisciência dos caminhos do acaso. Só se ficar calado. Basta ler e perceber a integralidade do texto para ser claro que nada na sua substância faria prever que suscitaria as reacções que teve. A não ser que se aceite que a mera menção do nome de Maomé por um cristão seja uma blasfémia. Corrijo: Maomé (s.a.w.), ou seja Maomé sallallahu alaihi wa sallam, que "Alá derrame a sua bênção e paz sobre ele" (Maomé), não vá o diabo tecê-las se eu não usar a fórmula canónica.


Quando digo que o Papa sabia exactamente o que queria dizer é porque o texto da conferência de Ratisbona é preciso, analítico e intelectualmente rigoroso. Diz sem ambiguidades o que quer dizer. Oferece poucas dificuldades de interpretação, a não ser pela sua densidade e compreende-se que, por não ser nem uma prelecção com meia dúzia de anedotas e frases assassinas, nem um discurso feito por qualquer especialista de marketing ou de "comunicação política", possa oferecer dificuldades de leitura nas redacções, que, para o entender, salvo as devidas excepções, o reduziram a um soundbite.

Toda a polémica gira à volta da frase de Manuel II Paleólogo, imperador de Bizâncio, que diz a um seu interlocutor muçulmano: "Mostra-me o que Maomé trouxe de novo e encontrarás coisas más e desumanas, como o direito de defender pela espada a fé que pregava." Esta é a frase que ficou como soundbite. Admitindo que tudo ficava por aqui, e poder-se-ia dizer que tal frase era redutora do islão e, acima de tudo, ocultava que também para os cristãos "o direito de defender pela espada a fé" foi durante muito tempo a prática habitual. O Papa estaria a pecar por omissão e duplicidade e por isso mereceria as críticas.

Mesmo que fosse assim, o Papa não deixaria de estar a dizer uma verdade sobre o islão ou sectores muito importantes e populares do islão que o tornaram nos dias de hoje a principal religião da espada. E depois? Não é? Que organizações extremistas praticam hoje o terrorismo global em nome da religião a não ser grupos que se reivindicam do islão? Se quisermos comparar com o que acontece do outro lado do mundo, pouco mais temos que uns grupúsculos americanos que colocam bombas nas clínicas que fazem abortos em nome do "direito à vida". É verdade que muitos muçulmanos nada tem que ver com a Al-Qaeda ou com as proclamações incendiárias dos clérigos xiitas, mas é maior o seu isolamento e, de longe, mais débil a sua voz, quando conseguem com grande coragem efectivamente distanciar-se. Os terroristas da Al-Qaeda estão hoje mais perto da identidade muçulmana do que os grupos violentos antiabortistas estão da identidade cristã. Esta é a verdade que se esperava que os muçulmanos dissessem todos os dias ao mundo, para se poder afirmar que existem "moderados", classificação cheia de ambiguidades e mais condenatória da situação actual do islão do que qualquer outra. O islão deixou-se sitiar pelos seus extremistas, e tal pode não ser definitivo, pode ser uma perversão da religião, mas é bastante grave.

Voltemos ao texto do Papa para além do soundbite. A conferência do Papa é um dos textos mais tolerantes que algum Papa fez até hoje, e talvez tenha sido por isso mesmo que foi atacada. Eu penso que há de facto razões para os fundamentalistas muçulmanos atacarem com violência o documento, exactamente pela sua substância e não pela citação fora do contexto. A frase que devia verdadeiramente irritar os fundamentalistas muçulmanos não é a que citaram, mas outra, do mesmo imperador: "Não agir segundo a razão, não agir segundo o logos, é contrário à vontade de Deus". Esta sim, pode ser entendida como um ataque ao islão de hoje, porque resulta expressamente do desenvolvimento do pensamento do Papa que com ela se identifica.

O que é que o texto papal diz? Que a razão humana, o logos dos gregos, é um elemento indissociável da voz de Deus, e que todas as tentativas de separarem razão e fé, colocando uma contra a outra, são um erro. O Papa identifica essencialmente duas correntes que cometeram esse erro: uma a que afirma a transcendentalização absoluta de Deus; a outra a que resulta da separação iluminista entre fé e razão, que foi transportada para o cientismo contemporâneo.

Muito do que diz o Papa tem que ver com a percepção que tem Manuel II Paleológo de que a violência ao serviço da fé é "desrazoável" e "contrária à natureza de Deus". O próprio Papa diz que esta constatação é a "frase decisiva em toda a argumentação", e que o imperador, um erudito de cultura grega clássica, estava a enunciar um dado fundamental da tradição clássica grega, absolutamente idêntico ao que é a "fé em Deus fundada na Bíblia".

Ora, aqui o Papa critica o islão, não por causa da violência da espada de Maomé, mas sim porque "na doutrina muçulmana Deus é absolutamente transcendente", ou seja, dito em breve e em grosso, não há verdadeira interacção entre Deus e os homens, não há necessidade da razão, a fé é essencialmente aceitação e obediência. O Papa refere, "para ser honesto", que na tradição teológica cristã surgiram tendências do mesmo tipo, mas condena-as na mesma crítica que faz ao islão.

Porque é que o Papa diz isto tudo? Está lá no texto em todas as entrelinhas e nalgumas linhas: ao valorizar a fusão plena da tradição grega do logos com o cristianismo, o Papa está a enunciar a tradição cultural da Europa, da história tumultuosa do seu pensamento e dos fundamentos da sua identidade. Está a falar de religião e de política, de cultura e de pensamento, da União Europeia e da Turquia, do cristianismo e do islão. Isto sim é que devia ser discutido, isto é o que o Papa esperava que fosse discutido. E isto é que interpela o islão, se ele se deixar interpelar.

(No Público de 21 de Setembro)

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© José Pacheco Pereira
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