ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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27.9.06
O PASSADO É UM PAÍS ESTRANGEIRO (Fragmento do texto O Passado é um País Estrangeiro - Memória pessoal da Guerra Civil Espanhola nos anos sessenta, lido na sessão de encerramento, no Instituto Cervantes, do Simpósio "Guerra Civil de Espanha: cruzando fronteiras 70 anos depois" organizado pelo Instituto em conjunto com a Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa.)[NOTA: por iniciativa do INDÚSTRIAS CULTURAIS foram colocados em linha dois excertos em video da intervenção, aqui e aqui no YouTube.] Na sua biografia de Ronald Reagan, Edmund Morris escandalizou a comunidade de historiadores americanos ao se colocar ele próprio ficcionalmente a testemunhar eventos da vida do seu biografado. Morris, cuja biografia de Theodore Roosevelt ganhara um Prémio Pulitzer e um American Book Award, era considerado um sólido praticante da história, com métodos tradicionais, que fora escolhido para biógrafo oficial de Reagan. Após uma longa expectativa, visto que Morris se atrasou muito na entrega do original, a sua obra Dutch. A Memory of Ronald Reagan usava esse device polémico que, não afectando o rigor das fontes e dos eventos, perturbava a distância que ia da narrativa, do sujeito da narrativa, ao autor da narrativa. No seu intróito, numa biografia excepcionalmente bem escrita do ponto de vista literário, Morris falava do impulso do biógrafo para o biografado, do autor para o tema, nestes termos: “Memory. Desire. (…) Before we recede to our respective darkness, I must allow these floating fragments, these dusting of myself to sparkle in his waning light”O primeiro capítulo abre logo no mesmo tom no seu título: “The Land of Lost Things”, uma variação do início do livro de L. P. Hartley The Go-Between, “The past is a foreign country; they do things differently there.” “They do things differently there.”. Yes, they do. O título deste simpósio é “Cruzando fronteiras: 70 Anos Depois”. Que “fronteiras”? As da geografia entre a Espanha em guerra e Portugal quase em paz? Ou as mais difíceis fronteiras do tempo, perturbado por quase dois terços de um século de diferença? As do tempo, claro, as mais difíceis de atravessar. Como é que eu as atravessei? Como é que na minha geração, geração - palavra que não quer dizer mais do que homens presos no tempo, feitos pelo tempo, - atravessamos essa fronteira da guerra espanhola, ainda tão viva, ainda mais viva do que está hoje, a caminho de morrer fora de Espanha e a caminho de viver em Espanha só pelas metáforas cruéis do “destino manifesto”? Se cada geração constrói a sua memória da história, como é que essa memória pode ser “limpa” da história que a está de novo a recriar? E isso é particularmente verdadeiro, quando se trata de gerações que vivem em tempos densos e fortes. E a minha geração teve a sorte ou o azar (para os outros) de ter vivido os “tempos interessantes” prometidos pela maldição chinesa. “Que vivas tempos interessantes” , pois vivemos tempos interessantes e até agora tivemos sorte em vivê-los do lado dos vitoriosos. Não sei se será sempre assim, porque os “tempos interessantes” ainda estão longe de acabar. No meio do caminho da minha vida, a revolução do 25 de Abril e, quinze anos depois, a queda do Muro de Berlim e o fim da URSS e da “guerra fria”, é dose de “tempos interessantes” demais para que não paguemos, mais cedo ou mais tarde, a sua factura. De um modo perverso, é o que está a acontecer. Ora, se a memória da guerra civil espanhola estava viva dentro do caminho e da realidade do 25 de Abril, já o não estava da mesma maneira quando da queda do Muro. Sem a “guerra fria”, ou se se quiser, com o fim da longa guerra civil mundial que atravessou o século XX, desde 1917 até 1989, a memória da guerra espanhola mudou completamente. É hoje mais perplexa do que foi alguma vez no passado e o revisionismo dos historiadores mais jovens, tornando-a aggiornata, retirando-lhe a densidade dramática de uma escolha impossível de se repetir, de se fazer com a clareza do passado. Será que na guerra de Espanha não há “lado bom” nem ”lado mau”, um pouco como na guerra entre o Irão e o Iraque em que se desejava que ambos os lados perdessem, como se isso fosse possível? Ou será que ao se fazer esta pergunta, se está no fundo a justificar Franco, igualando tudo, num relativismo de amálgama, que deixa para trás os dilemas dos que a viveram? Será que os dilemas de 1936, não são possíveis de formular do ponto de vista moral, ou se se quiser, apenas do ponto de vista das “lições” da história, ou seja, da política? Será que a história cuida de dar “lições”? Os historiadores dizem que não na primeira frase, mas acreditam que sim na segunda, senão não escreviam sobre história, mas sim sobre a mecânica dos fluidos. Não restam dúvidas de que para a minha geração portuguesa, formada nos anos da década de sessenta, à volta da data simbólica do Maio de 68, cresceu a perplexidade sobre o que aconteceu em Espanha, dissolvendo-se a necessidade aguda da memória da guerra entre o 25 de Abril e a queda do Muro. Porquê? Por que é que antes nos lembrávamos, ou melhor, por que é que antes não queríamos esquecer, e hoje nos esquecemos tão naturalmente? Não é muito fácil responder, mesmo quando percebemos quanto era mítica a nossa lembrança espanhola, porque ela nos incomoda no presente, quando já não acreditamos em nenhum dos mitos que alimentamos no passado. “The past is a foreign country”. (...) (url)
© José Pacheco Pereira
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