ABRUPTO

9.9.06


CICLOS E MITOS (1)



Quem cá anda há mais tempo já percebeu os ciclos de sobe e desce, da fama e do esquecimento, o eterno retorno de ideias velhas apresentadas como ideias novas. Isto contraria a tentação adâmica de muitos, cuja memória é demasiado curta, ou a ignorância demasiado longa, e que acham que o mundo começou com eles, dedicando-se com estrépito a arrombar portas que muitos outros antes deles abriram com mais dificuldades. O espectáculo de os ver voar direitinhos à porta e passar sem dar por isso pelo imenso espaço aberto devia ser uma lição de humildade, mas normalmente não é.

Um destes ciclos recorrentes é a fortuna do par "esquerda-direita" como classificação dominante e moda identitária. Contrariamente ao que se pensa, o retorno actual do par é relativamente recente, data do período posterior ao fim do comunismo, que permitiu voltar a categorias maniqueístas, logo aparentemente mais simples, de análise. Onde antes era comunista-anticomunista, fascista-antifascista, democrata-antidemocrata, passou a ser esquerda-direita, uma classificação mais genérica e mais vasta, essencialmente histórica antes de ser política. Facilita a vida aos jornalistas e ao pensamento semijornalístico em que estamos mergulhados e por isso faz o seu caminho, embora cada vez menos sirva para classificar qualquer realidade contemporânea, num mundo complexo e com questões distintas do mundo pós-Revolução Francesa e pós-Revolução Industrial, onde a distinção foi gerada e sobreviveu com altos e baixos.

Ora, o que poucos vêem é que o retorno do debate "esquerda-direita", agora transvertido de "fundacional da direita" é mais um sintoma de crise da classificação do que da sua pujança. Sendo antes de mais um remake sem a frescura nem originalidade do debate original, cujo primeiro acto acompanhou a fundação do PP versus CDS, e a do BE, a discussão actual é, na verdade, um reflexo da crise política que se vive na pequena galáxia do CDS-PP, incluindo aí uma ala minoritária do PSD que cresceu nos anos Barroso-Lopes e tem como objectivo consertar um péssimo resultado eleitoral e os problemas de intervenção política do grupo ligado a Paulo Portas. São os impasses políticos desse grupo que estão na origem do actual debate, embora nalguns aspectos este os ultrapasse.

Voltemos atrás, à história ideológica, lexical e taxionómica pós-25 de Abril. Basta revermos os debates políticos na televisão, rádio e jornais, durante quase duas décadas depois do 25 de Abril para entender que mais do que no dualismo ideológico direita-esquerda, a identidade estava centrada nos nomes da identidade partidária: ser-se centrista, social-democrata, socialista ou comunista era a mais comum e suficiente forma de identidade. Se se caminhasse para o dualismo - e não se caminhava por regra -, as dificuldades de posicionamento apareciam de imediato. Nesses anos, apenas pequenos grupos ideológicos à direita se nomeavam como tal, embora preferissem classificar-se de "nacionalistas revolucionários" e alguns mesmo não desdenhassem assumir-se como tributários de várias tradições do pensamento autoritário incluindo o fascismo.

A pouca fluidez do nosso sistema partidário também não corria por esses canais duais: por exemplo, o PRD, os "renovadores" ligados ao General Eanes, não se colocavam no espectro dualista, mas demarcavam-se através de issues, através de linguagens e através de personalidades. O debate absurdo, mas que existiu, sobre se o PCP era de esquerda ou de direita, numa altura em que era vital a demarcação dos socialistas dos comunistas, é outro exemplo. Então os socialistas nem sequer permitiam a pertença à "casa comum" da esquerda dos comunistas e vice-versa, o que mostrava as dificuldades operacionais da nomenclatura. Com excepção do Movimento da Esquerda Socialista e da União da Esquerda para a Democracia Socialista, e a excepção precursora do Clube da Esquerda Liberal, que usava a "esquerda" para contrabalançar o "liberal", a palavra "esquerda" não entrou no sistema político desde a "Esquerda Democrática" na Primeira República. O mesmo acontecia à direita.

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Tal não significava que o dualismo esquerda-direita não fosse importante como factor de identidade política, em particular como manifestação de pertença afectiva, biográfica, geracional, histórica, nem que, se perguntados, os portugueses não se identificassem dentro dele e considerassem que cada lado definia um campo, um território. Só que, depois, na prática, usavam outros nomes para classificar as entidades políticas e tal lhes bastava. Necessitavam de tanta adjectivação ("esquerda socialista", "esquerda revolucionária", "esquerda liberal", "direita revolucionária", etc.) que se percebia que eram mais um ponto de partido do que de chegada. A classificação esquerda-direita era poderosa como posicionamento biográfico e factor de identidade, mas permanecia por nomear, permanecia sem explicitude, e, quando tal acontecia, remetia mais para os extremos do que para o mainstream. Quem se dizia de direita aparecia como sendo de extrema-direita e quem se afirmava de "esquerda-qualquer coisa" já se sabia que não era nem socialista soarista, nem comunista cunhalista. Com o tempo, à medida que o eleitorado se "soltava" e esbatia no seu comportamento a identidade partidária, alternando o voto "ao centro" entre o PS e o PSD, o fenómeno da demarcação ideológica também perdeu força.

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Foi neste contexto que a aparição desse outro par de gémeos, o PP e o BE, nos extremos do espectro político, ambos muito influentes na comunicação social, tornou de novo dominante a classificação direita-esquerda. A ambos interessava uma classificação identitária forte e que fizesse simultaneamente a ruptura e a integração. Vinham das margens, mas desejavam a integração no mainstream político em categorias reconhecidas, em que cada um parecesse como guardião da identidade do seu "lado" - o PP da direita, o BE da esquerda. Cada um se definia como sendo a encarnação da verdadeira identidade do seu lado: o PP como a verdadeira direita face ao CDS e o BE como a verdadeira esquerda face ao PS. Devido à história do sistema político português depois do 25 de Abril, a mecânica era diferente em cada um dos extremos: o PP radicalizava à direita e o BE desradicalizava à esquerda; o PP pretendia ocupar um espaço que considerava vazio, o da direita, o BE pretendia deslocar-se da extrema-esquerda, para se afirmar como a esquerda face ao PS. A novidade do BE em relação aos grupos de extrema-esquerda que o constituíam era essencialmente essa, a de se definir como a "esquerda" do PS e não a "esquerda" do PCP.

Um dos mitos a que hoje se atribui papel "fundacional" na versão actual da distinção "esquerda-direita" é ao jornal O Independente. É em grande parte uma reconstrução a posteriori, porque aquilo a que o jornal deu origem, mais do que a uma nova direita foi a um populismo agressivo, antiparlamentar, anti-sistémico que tanto serviu o PP como o PCP, tanto serviu o radicalismo do PP de Manuel Monteiro-Paulo Portas e a sua variante boçal do "Paulinho das Feiras" como o justicialismo esquerdizante dos que desejavam uma "república dos juízes" em Portugal. Ambos foram filhos de O Independente, irmanados no combate aos mesmos inimigos, aliados que se reconheciam mais do que se pensa e do que a história revisionista e mítica dos dias de hoje quer reconhecer. Do papel dos mitos de O Independente no ciclo destes ciclos, falaremos a seguir.

(Público, 7/9/2006)

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© José Pacheco Pereira
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