O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: FOGOS, BALDES E BALDAS
Há cerca de um ano, Jorge Sampaio, acompanhado por António Costa, visitou uma zona martirizada pelo fogo. A certa altura, perplexo com o facto de haver casas com a floresta a entrar pelo quintal adentro, o Presidente perguntou ao Ministro como é que tal era possível - e a resposta foi tão curta quanto esclarecedora: «É proibido, mas a lei não é cumprida». Não ficámos a saber se, porventura, Sampaio lhe terá respondido que um Ministro da Administração Interna é pago, precisamente, para fazer com que a lei seja cumprida - porque, se as árvores estão junto às casas, não é só porque alguém lá as meteu, mas também porque as autoridades o não impedem. Suponhamos, no entanto, que esta acção, pela sua envergadura, é impraticável. Mas... e se alguém dissesse a essas pessoas - que parece que convidam o fogo para almoçar... - que o Estado não pagará os prejuízos que venham a ter? E se os bombeiros fizessem saber que, em caso de escassez de meios, elas não terão prioridade no socorro? Que diabo! Não há autarcas, bombeiros nem GNR que ajudem ou obriguem as pessoas a cumprir a lei, cortando, atempadamente, as árvores que estão onde não deviam estar, mesmo que seja preciso intervir em propriedades de donos desconhecidos ou ausentes? Mas, é claro, palpita-me que vamos continuar indefinidamente a ver gente desesperada, a clamar por meios aéreos enquanto enfrenta as chamas do quintal com mangueiras de jardim e baldes de plástico - porque o mais certo é que desabafos como este não passem de conversa... debalde.
(C. Medina Ribeiro)
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Em jeito de comentário sobre o assunto e sobre o que escreveu o C. Medina Ribeiro apetece-me citar o velho provérbio que diz “só te lembras de S. Barbara quando fazem trovões”, e já agora aquela velha filosofia do “isto só acontece aos outros”. É verdade que toda a gente sabe que não se deve ter mato até à porta de casa, que as arvores até uma determinada distância devem ser abatidas, que as matas devem ser limpas. E é também verdade que os autarcas, bombeiros, parques naturais, protecção civil, comunicação social etc. dizem repetidamente às pessoas o que devem fazer.
E isto não é um problema de lei é um problema de bom senso. Além disso a afirmação do ministro de que a lei não é cumprida é apenas o reconhecimento de que a sanha legisladora deste país produz coisas impensáveis e impossíveis de fazer cumprir (conhece algum peão que alguma vez tenha sido multado por atravessar uma rua a menos de 50 metros de uma passadeira?). Acontece ainda que a floresta e o mato deixaram de ter importância económica para as pessoas. Já não se apanha mata para fazer camas para o gado nem para o alimentar, os baldios já não existem, não há lareiras nem fogões nas casas (a não ser para divertimento) que consumam os resíduos florestais. Tudo isso deixou de ter importância. Disso tudo resta apenas a beleza das paisagens e o impacto ambiental na desertificação. O que é espantoso é o facto de na televisão nós sermos bombardeados com a atitude desesperada das pessoas quando lhes ardem coisas às quais não dão qualquer importância durante o resto do ano. Para além disso o velho provérbio espanhol que diz que “os fogos se apagam no Inverno” faz todo o sentido.
Fernando Frazão
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1 - A questão colocada por C.Medina Ribeiro, das "árvores junto às casas", carece de melhor precisão. O que vejo no território são cada vez mais casas novas a serem construídas junto às árvores. Não se pode falar apenas nas "árvores que estão onde não deviam estar", isso é escamotear o problema das casas que estão onde não deviam estar. Estão aqui subjacentes questões profundas do ordenamento do território que é preciso enfrentar.
Confrontando os PDM com a realidade no terreno, verifica-se que, especialmente nas áreas periféricas, permanecem vagos a esmagadora maioria dos solos que eram destinados a novas construções para colmatação dos núcleos e consolidação dos aglomerados. Entretanto, o valor patrimonial desses solos aumentou graças à sua classificação como "urbanos" no PDM. Aumentou também porque, em virtude da sua classificação, é nessas áreas que se vão fazendo investimentos públicos na instalação de novas infraestruturas e melhoria das já existentes. Basta dar uma volta por qualquer aldeia do norte e do centro para ver a imensa quantidade de espaços livres entre as casas existentes, terrenos que confinam com a rua, com passeios de peões, com redes de água e esgotos, iluminação pública, etc, com todas as aptidões para receber casas – mas que permanecem desaproveitados. No entanto, na matriz esses solos permanecem, de um modo geral, inscritos como "rústicos", e é nessa base que são tributados. Em suma: a classificação administrativa como "urbanos" valoriza-os automaticamente, o dinheiro público infraestrutura-os, os proprietários, sem esforço, ficam com o seu património altamente valorizado, não pagam impostos por isso, especulam com o seu valor no mercado, o preço do metro quadrado atinge valores absurdos até nas aldeias – e muitas pessoas acabam por ir construir em áreas indesejáveis, onde o solo é mais barato, dispersando cada vez mais as construções. É por isso que as casas estão a ir para ao pé das árvores. Depois, recomeça o ciclo: os eleitores reclamam, a junta da freguesia asfalta a estrada, 4 anos depois põe a rede de água... Este fenómeno da dispersão urbanística, combinado com a profusão descontrolada do eucalipto – que, sendo a mais rentável, é a árvore que arde melhor e a que mais eficazmente propaga o fogo – constituem a matriz do nosso actual ordenamento do território em extensas áreas do país.
2 - Agora cabe perguntar-se: porque é que se deixam construir as casas nesses locais? Porque são muito débeis os regimes de protecção dos solos não urbanos: um vulgar solicitador facilmente monta esquemas que, a coberto da compropriedade, dão cobertura jurídica ao fraccionamento descarado de artigos rústicos; facilmente se manipulam e multiplicam os artigos; facilmente se obtém uma desafectação da RAN (Reserva Agrícola Nacional) ou da floresta para construção de "habitação própria"; facilmente se vende essa "habitação própria" e se faz outra, noutro "artigo"; as áreas florestais, nos PDM, são em regra "o que sobra" em termos de ordenamento, sem regime de protecção ou com fracas restrições à urbanização; etc. Ou seja: as facilidades e os direitos inerentes ao uso da propriedade do solo são cada vez mais fortes e mais desproporcionais em relação ao interesse público. A verdade é que a legislação e a regulamentação são cada vez mais protectoras dos direitos da propriedade do solo (vd os valores absurdos alcançados em sede de expropriação para fins de utilidade pública). Por outro lado, no que se refere ao controlo do uso do solo / ordenamento do território, as leis e regras são cada vez mais defensivas e cada vez menos proactivas.
Por outras palavras: quem de facto tem a iniciativa e a capacidade de ocupar, usar e transformar o solo é essencialmente o agente do interesse privado, alicerçado no valor financeiro do solo. A administração pública reduz-se ao papel de defensora dos outros valores inerentes ao território (vd estrutura ecológica, RAN, valores intangíveis como a "paisagem", etc) – e mesmo aí vai recuando e cedendo cada vez mais. Entregue à iniciativa do interesse privado, o crescimento das povoações é inconsistente, errático, descontínuo no espaço e no tempo. Entretanto, nas nossas vilas e cidades, é extraordinário o número de edifícios abandonados e em ruínas, absurdo o número de novos fogos excedentários, incontável o número de construções não licenciadas. Simultaneamente, cresce imparável o fenómeno das periferias.
Nas aldeias também há especulação fundiária, por isso também há periferias. "As casas vão para ao pé das árvores. Depois, recomeça o ciclo... " Em suma: desenvolveu-se, generalizou-se e consolidou-se por todo o país, e no próprio aparelho de Estado, um complexo e poderoso modelo de operação sobre o território, em que o interesse privado é definitivamente o líder proactivo e o interesse público é o espectador conformado, o agente servil, passivo/defensivo. O ordenamento do território está cada vez mais refém dos grandes, médios, pequenos e manhosos interesses do mercado fundiário e imobiliário, o qual assenta essencialmente no valor do solo e nos exagerados direitos da propriedade. As implicações deste modelo vão muito para além do mero resultado físico e do aspecto (in)estético das nossas cidades, vilas, paisagens. Os eucaliptos e as casas vão ardendo, mas nem por isso o negócio dos solos deixa de prosperar.