LENDO VENDO OUVINDO ÁTOMOS E BITS de 23 de Agosto de 2006
A crítica de Eduardo Cintra Torres no Público ao tratamento noticioso dos incêndios na RTP assenta em dois “factos” (1) ;
- um, a existência de ordens, ou instruções oriundas do Gabinete do Primeiro Ministro à direcção editorial da RTP quanto ao tratamento dos fogos
(« as informações de que disponho indicam que o gabinete do primeiro-ministro deu instruções directas à RTP para se fazer censura à cobertura dos incêndios: são ordens directas do gabinete de Sócrates».)
- dois, a minimização dos incêndios nos telejornais, em particular num dia em que graves incêndios ocorriam a Norte
“E o Telejornal (RTP)? Não fez nenhum directo. Remeteu os incêndios para a 18ª notícia de 28, já depois do desporto. As três únicas notícias sobre incêndios activos foram tão breves que totalizaram menos tempo (1m50) do que a convalescença de Fidel Castro (2m16) ou a vitória dum João Cabreira na etapa do dia da Volta (2m18). As outras três notícias relacionadas com fogos eram todas positivas: um inventor dum autotanque; uma visita de bombeiros alemães a Vila Real; a entrega de 16 jipes pelo Instituto de Conservação da Natureza aos parques naturais (mas antes, sobre o incêndio no Parque Nacional da Peneda-Gerês, o Telejornal falou duas vezes em Arcos de Valdevez e só no meio da notícia referiu uma vez o Parque)”.
Quanto ao primeiro, Eduardo Cintra Torres terá certamente que ir mais longe no seu esclarecimento, visto que parte de uma situação ambígua entre ser jornalista e dever preservar as suas fontes e emitir um comentário crítico que em principio não é uma notícia. Se tal “facto” (as instruções do Gabinete) foi resultado de uma actividade jornalística normal ele deveria ter sido pela sua relevância incluído no noticiário político do Público e só depois, ou em simultâneo, comentado na coluna de crítica. O estatuto de colunas de crítica como a que mantém no Público é ambíguo, como aliás acontece com muito do que hoje se escreve nos jornais em peças assinadas que misturam factos com opinião. Por se tratar de uma coluna identificada como tal, isso protege a opinião, mas “desprotege” os factos lá referidos em primeira mão. Isso explica o processo da RTP, que Cintra Torres certamente ponderou, como consequência possível do conteúdo da coluna.
Duas observações de passagem, mas relevantes para o “caso”. Uma é que Eduardo Cintra Torres produz uma das raras colunas de comentário sobre a televisão (na realidade é mais do que isso é crítica dos media, o que explica alguns furores) que pode ser chamada de “crítica”. A outra é que nas reacções de alguns jornalistas ao “caso” é claro que não perdoam a Cintra Torres ter colocado em causa não o Governo de Sócrates, mas a muito mais delicada questão das relações dos governos socialistas com a comunicação social. Quando os governos são do PSD e do CDS, as relações com a comunicação social são cuidadosamente escrutinadas e denunciadas, quando os governos são do PS a matéria torna-se sempre explosiva e a exigência de prova, mesmo em textos analíticos, vem sempre à cabeça. Um caso menor pode servir de comparação: a relativa complacência com que o livro de Manuel Maria Carrilho foi recebido, com acusações insubstanciadas muito mais graves do que as que fez Cintra Torres (caso fiquem elas também por provar, o que seria grave).
Sobra o segundo “facto” que aparentemente ninguém quer discutir, remete para uma análise da informação da RTP, repito aqui o que escrevi antes do artigo de Cintra Torres:
O governo tem beneficiado de uma cobertura jornalística que tem minimizado a importância dos incêndios este ano, e consequentemente, não confronta a realidade com o que foi prometido e anunciado. Parte desta situação vem dos compromissos que a comunicação social, em particular as televisões, assumiram quanto à cobertura dos fogos, corrigindo os excessos do ano passado. Mas, como quase sempre acontece, a correcção do excesso foi desequilibrada e neste ano, a não ser os atingidos pelos incêndios, não há percepção pública da gravidade do que se está a passar. Isso ajuda à desresponsabilização do governo e impede o debate sobre a eficácia das suas medidas e sobre o modo como está a reagir à situação, assumindo uma atitude de de muito mau agoiro para o futuro. (no Abrupto)
A governamentalização da informação da RTP (com este e com todos os governos) tem uma raiz de fundo impossível de corrigir sem a sua privatização: o seu carácter de estação “pública” torna-a dependente de orientações governamentais quanto à sua cadeia hierárquica de poder interno e financiamento . Como muitas vezes tenho dito, o mais importante é escolher as pessoas certas para o lugar certo, não dar “instruções “ pelo telefone. E depois há o dinheiro que vem do bolso dos contribuintes e cujas “orientações” de despesa (por exemplo na compra do circo do futebol) têm relevância política.
Acresce depois que a mais ambígua das coisas é aquilo a que se chama "serviço público", nunca claramente definido. Tanto serve para fazer a cobertura menos incómoda para o governo dos incêndios, como de muitas outras matérias, como para produzir simultaneamente alinhamentos no telejornal completamente tablóides (2) (com o argumento que uma televisão que ninguém vê não cumpre com o "serviço público"), como para tratar a agenda governamental com uma deferência particular dando a ministros, secretários de estado, inaugurações e anúncios de obras um lugar privilegiado nos telejonais (3). Etc., etc.
(1) Coloco factos entre aspas não por fazer um julgamento sobre a sua veracidade, mas para me referir a uma categoria jornalística determinada.
(2) Exemplos de ontem: o telejornal das 13 horas abre com uma longa peça sobre a queda de um ultraleve em Cascais, em contraste com o conteúdo noticioso das notícias da SIC (não vi a TVI).
(3) Um exemplo positivo de como um jornalista deve tratar uma inauguração e um anúncio governamental foi a de um jornalista da SIC que apertou Correia de Campos com perguntas sobre medidas que anunciavam uma cobertura da população por médicos de família. Acabou-se por saber que afinal essa cobertura era de um terço dos abrangidos e desse terço apenas um terço iria ser coberto até ao fim do ano, se tudo corresse bem. Passou-se de um anúncio genérico, para um terço de um terço. Mérito do jornalista que não tem o estilo dos telejornais da RTP.
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A pretexto da «polémica» levantada pelo artigo de opinião de Eduardo Cintra Torres (ECT), gostaria de referir um pequeno pormenor, que não é de somenos importância. A análise que ECT aos noticiários da RTP, em contraste com as privadas, foi do dia 12 de Agosto (sábado). Por sinal, também detectei em 6 de Agosto (domingo), uma situação similar, que aliás me fez escrever um post no meu blog Estrago da Nação (www.estragodanacao.blogspot.com) intitulado «O frete televisivo», com o seguinte teor:
No Portugal da RTP - empresa pública de televisão -, hoje não houve fogos em Portugal. E os que houve ficaram remetidos para as calendas do alinhamento e apenas os que foram extintos. Enquanto as outras televisões (SIC e TVI) deram o destaque merecido, com directos q.b., a RTP gastou 33 minutos do seu telejornal das 20 horas a abordar a guerra no Líbano (com pelo menos três directos com outros quantos jornalistas), a tensão no Irão, os problemas em Gaza, a doença de Fidel Castro, um acidente no Parque da Pena devido à queda de uma ramada de eucalipto (que causou uma morte). Depois em dois ou três minutos, a RTP apenas abordou dois incêndios, ambos circunscritos de manhã e, nessa altura, já extintos: na Póvoa do Varzim e em Paredes (Aguiar de Sousa). De resto, nem uma única palavra sobre a situação actual, designadamente a mais de uma dezena de incêndios que então estavam ainda não circunscritos. Eis um exemplo de serviço público que, sob critérios inconfessáveis, se confunde com serviço do Governo. Eu bem que temia que a introdução de critérios para a abordagem dos incêndios pela Direcção de Informação da RTP - de que falei há dias -, ia dar nisto...
No dia seguinte (segunda-feira) e ao longo dos dias úteis, fazendo zapping pelas três estações, já não reparei em diferenças de tratamento tão avassaladoramente distintas, embora quase sempre com menor destaque na TV pública, mas as abordagens já eram isentas, conforme se pode constatar por aquilo que escrevi num post desse dia 7 de Agosto:
Hoje, a RTP viu-se obrigada a abordar os incêndios. A contra-gosto, é certo, porque não abriu o telejornal com esse tema, ao contrário dos outros canais. Mas vá lá, melhorou: falou dos incêndios que ainda estavam a lavrar e não apenas, como ontem, naqueles que já tinham sido extintos...
Aliás, houve pelo menos um dia nessa semana em que a RTP abriu o noticiário com os fogos que então se faziam sentir, com directos nos locais mais afectados.
Recordo-me também que em 9 de Julho (domingo), dia em que morreram seis bombeiros na Guarda, a RTP praticamente ignorou essa tragédia, se bem que apenas a TVI tenha dado destaque de abertura noticiosa.
Ou seja, notam-se, por estes exemplos, uma claríssima distinção entre notícias de fogos abordados pela TV pública ao «fim-de-semana» e aos «dias da semana», não apenas ao nível do destaque como de isenção noticiosa. Se o pivot dos telejornais é diferente (ao fim-de-semana não é o José Rodrigues dos Santos), penso que as equipas de coordenação editorial também serão diferentes. Ora, perante estas diferenças, podemos estar perante uma mera coincidência e que ECT está a mentir. Mas no mundo real há poucas coincidências...
(Pedro Almeida Vieira)
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As considerações de carácter geral que Cintra Torres faz acerca da influência do poder político na RTP não causam espanto a ninguém, pois o que ele diz é exactamente o que o cidadão-comum pensa: os governos só não interferem na televisão pública se não puderem - e, neste caso dos fogos, até é bem provável que isso tenha sucedido.
Até aí, tudo bem; o problema só aparece quando ele lança acusações concretas que, além de serem em segunda-mão, não pode provar.
De qualquer forma, já se sabe há muito tempo que é mesmo assim que "a coisa funciona": ao abrigo da liberdade de expressão e do estatuto da classe, um jornalista pode "dizer o que lhe disseram" as fontes em quem confia. A seguir, se necessário, ergue o escudo do "segredo das fontes" e dorme descansado. A lógica parece-me perversa mas, pelos vistos, é essa.
Mesmo assim, não resisto a contar o que, em tempos, se passou com Mário Castrim quando um dos seus adversários asseverou que "tinha ouvido dizer, acerca dele e de fonte segura, determinadas coisas".
O autor d' «O canal da Crítica» respondeu, na sua coluna do «Diário de Lisboa», algo como (e cito de memória):
«Agradeço que, por escrito, declare formalmente que me autoriza a divulgar tudo o que, de fonte segura, eu já ouvi dizer de si».