ABRUPTO

1.6.06


MAL-AMADOS



Jack Welsh, descrito na imprensa portuguesa como "um dos gestores mais admirados em todo o mundo" não esteve com meias medidas e, numa conferência em que participou, exprimiu o seu espanto pelo facto de os portugueses não se mostrarem "envergonhados" pela maneira como são vistos no estrangeiro. E disse mais: "É humilhante para os portugueses a percepção que o exterior tem de Portugal, que é a de uma contínua degradação e declínio ao longo dos últimos anos."

Welsh fez bem em dizê-lo e fazia-nos bem ouvir mais verdades como esta para substituirmos a nossa balofa e inconsequente auto-estima pela percepção de que a realidade não é propriamente um espelho do nosso excesso identitário. Como vivemos no mundo das ilusões, não queremos saber por que é que homens como Welsh, que não precisava sequer de se dar ao trabalho e à incomodidade de dizerem coisas feias sobre os seus anfitriões, são capazes de sentir por nós a "vergonha" que nós não temos. Basta ler os comentários indignados a estas declarações para ver como a "arrogância do estrangeiro" nos serve para esconjurar o que não queremos ver e desresponsabilizarmo-nos do que fazemos e não fazemos.

É particularmente útil sermos confrontados com a nossa imagem vista de "fora", quando mais uma vez nos entregamos à tarefa permanente de nos iludirmos com o futebol. A futebolândia está a assumir o papel de nossa "pátria", quando não conseguimos fazer melhor a que temos. Talvez por isso lidamos bem e contentamo-nos com o que dura pouco e não dá muito trabalho, fadados para bater os recordes do Guinness, se isso implicar número, festa, um pouco de idiotice e muitos autocarros pagos pelos nossos impostos. Encher as ruas de Pais Natais e os estádios de senhoras coloridas, isso somos capazes de fazer. Ser exigentes e abandonar a nossa consabida "displicência", que Eça retratou como ninguém em Fradique, isso não nos leva a colocar bandeirinhas nas janelas.

Mas nem o futebol apaga de todo o choque que as imagens de Timor fazem à nossa idílica visão do "mundo feito pelos portugueses", outro repositório da nossa permanente procura de auto-estima na ignorância e na facilidade. É uma velha ilusão pós-colonial que temos por todo o lado, a de acharmos que os povos por onde nós passamos, muitas vezes de forma completamente episódica, nos estimam de forma muito especial. A realidade encarrega-se de nos desiludir, mas nós queremos pouco saber da realidade.

Os brasileiros discutem seriamente se não teria sido melhor terem sido colonizados pelos holandeses e alguns maldizem o dia em que a Holanda perdeu o Brasil para o reino de Portugal. Reagem pavlovianamente a qualquer up-grade da nossa presença, seja nos dicionários e na ortografia, seja na literatura, seja nos negócios, seja na política. A maioria dos portugueses nem sequer sabe, nem ninguém lhes diz, que muitos "irmãos" brasileiros nutrem tais sentimentos familiares.

Em Angola damo-nos bem com os governantes, convencidos que nos damos bem com o povo. Mas estes tratam-nos com arrogância em todos os momentos em que não nos portamos bem e esquecemos que somos tolerados apenas enquanto formos serventuários de um dos poderes mais corruptos de África. A elegância europeia da família "Dos Santos" pode partilhar os salões com muitos empresários portugueses, mas o que flui entre eles é o dinheiro dos negócios, não é respeito nem consideração. Qualquer mínima tergiversação no código de conduta da omertà luso-angolana dá logo origem a editoriais do Jornal de Angola e admoestações aos "tugas".

Na Guiné-Bissau, nem vale a pena pensar, porque se tornou inabitável. É talvez a única parte do império que pensamos que perdeu as cores verde-rubras e voltou a dissolver-se no negro de África, na África não recomendável em que não entramos. Nunca pensamos Angola e Moçambique só como África, mas a Guiné é África de vez, ou seja, é-nos indiferente.

O que é que sobra? De São Tomé sabemos pouco, mas pensamos que talvez pudesse ter sido um Dom-Tom português [ex-colónia francesa com estatuto especial na UE] que deixamos escapar à sorte de ter entrado na União Europeia e, como na Ilha da Reunião, de ter vacas pagas pela Política Agrícola Comum e as roças a funcionar. Temos a vaga nostalgia de que, se não fosse o PREC, São Tomé, como aliás Cabo Verde, poderiam ter continuado "nossos", com um governador benigno, dinheiros comunitários e apenas com uma agitação residual e irrelevante de alguns independentistas a quem a democracia do 25 de Abril permitiria um partido e um jornal local em crioulo.

Macau, esse, nós esquecemos depressa. Ficou chinês com imensa velocidade e só existe entre nós como memória da "árvore das patacas", com a má fama de ter sido o local de perdição dos socialistas que o governaram nos anos do fim. Foi-se o exótico, fica Camilo Pessanha, mas o quem é que coleccionaria cromos com o bizarro Pessanha, quando temos os sub-21 e os supra-21?

Resta Timor, a última e hoje a maior das nossas ilusões pós-coloniais, que desaba nos ecrãs de televisão, quando vemos os bandos de "jovens" destruindo os escassos bens do seu país e somos obrigados a chamar-lhes não indonésios, nem milicianos a soldo dos indonésios, mas sim timorenses. O país que os portugueses acham que tornaram independente com as manifestações silenciosas de Lisboa, a quem os jornalistas passaram a chamar Timor Lorosae para que na palavra os seus mitos se fizessem realidades, e sobre o qual alimentamos o absurdo transversal, à esquerda e à direita, que os timorenses querem ser portugueses, conhece um golpe de Estado (que também não queremos ver), associado a violências típicas de "Estado falhado", que o tornaram ainda mais pobre e esquecido.

Ficamos mal amados, mal lembrados, pouco estimados no mundo e Welsh lembra-nos com crueldade que ainda estamos pior, que estamos num caminho descendente. Lembrá-lo é negativismo dos intelectuais, traço típico desde os "Vencidos da Vida" das nossas elites ou outro defeito qualquer que faça parte do problema e não da solução? Talvez. Também. Mas não só. E não deixo de pensar que mais vale uma boa dose de realidade, cruel que seja, do que a ilusão das bandeirinhas, que ao fim do primeiro jogo, ao fim de uma qualquer derrota no relvado, se transforma em azedume, zanga e justificação de impotência para nada se fazer.

(No Público de hoje.)

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© José Pacheco Pereira
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