ABRUPTO

18.5.06


A VITÓRIA PÓSTUMA DO XVI GOVERNO CONSTITUCIONAL

Hoje, muita gente que deu o chamado "benefício da dúvida", ou até bem mais do que isso, ao dr. Lopes, abomina-o com vigor... e sem memória. Eu, que nunca lhe dei esse benefício, estou à vontade para ver o pano de fundo em que ele cresceu, e por breves momentos venceu, e perceber que esse pano de fundo está cá bem mais ancorado do que parece. A personagem que o simbolizava "anda por aí", mas o mundo que o criou está bem mais "por aqui" do que muitos querem ver.
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Os sinais desse Portugal estão à vista todos os dias mostrando como só para os outros, para outro Portugal, é que existe a realidade da crise, dos despedimentos, das dificuldades económicas, da perda do poder de compra e da quebra das expectativas. Já sabemos que a indústria das férias tropicais está de vento em popa, como uma breve visita ao aeroporto de Lisboa revela, com as pequenas multidões que partem pálidas e regressam coloridas e com chapéus, sandálias e modismos brasileiros, mexicanos, dominicanos e cubanos. Já sabemos que, ponte sobre ponte, o Algarve se enche de gente com carro e famílias, entupindo as estradas, consumindo uma gasolina que é suposto estar cara, mas que nunca esmoreceu as centenas de quilómetros em direcção ao Sul. Já sabemos que o novo Casino, pérola da governação lisboeta, mil vezes mais eficaz na sua capacidade de existir do que as contrapartidas que foram prometidas para a sua autorização, está cheio de povo, do povo de todas as classes A, B e C, na classificação do marketing. E o povo desloca-se alegre e feliz para os "bandidos com um só braço" que funcionam barato e rápido, deglutindo milhares de moedas, como se elas não faltassem a montante e jusante do Casino. É a "retoma", e quem tinha razão foi quem a anunciou. Lá voltamos ao chefe do XVI Governo Constitucional e à sua omnisciência. Todos estes portugueses nunca passaram pela "toma", estão sempre na "retoma", e folgam como é sua condição.
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Mas a vitória póstuma do XVI Governo Constitucional não se limita a ser económico-social, é também cultural. Já dou de barato o futebol, essa "paixão" nacional que tudo faz parar e que tão do agrado era do chefe do XVI Governo Constitucional, ele próprio dirigente e comentador desportivo. Ele sentir-se-á bem com a glória anunciada do escapismo futebolístico, que nos vai encher as casas nos próximos meses, com uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma. O Governo, qualquer governo, agradece imenso que haja muito futebol e municia a televisão pública de abundantes fundos para nos encher o ecrã (por falar nisso, já comprou o seu ecrã plano gigante para ver os jogos do Mundial?). Mais vale ver futebol do que pensar no "estado da nação".

Depois há o novo Campo Pequeno, cuja inauguração teve honras de grande espectáculo levado ao país todo pela televisão pública. Se deixássemos o lazer e os brinquedos tecnológicos, podia ser a televisão de Salazar e Caetano a fazer aquela festa. Melhor: podia ser a sociedade do salazarismo a fazer aquela festa. Touros e o mundo dos touros, banda filarmónica tipo Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898 de Alcochete (sem desprimor para esta, justa vencedora do 1.º lugar na categoria de Tauromaquia no Concurso de Bandas do Ateneu Vila-franquense), sevilhanas e fados marialvo-toureiro-taurinos, e até o pobre do Lorca, que mais uma vez morreu às cinco em ponto da tarde às mãos de Simone de Oliveira.
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O jet set que se acotovelava para ser entrevistado pela RTP também frequentava os salões do XVI Governo Constitucional. Era o seu mundo "cultural", personificado numa das mais entusiastas e filmadas figuras da bancada da Praça de Touros, Cinha Jardim. Tudo aquilo não foi um vulgar espectáculo, como nos explicavam os entrevistados, mas uma recriação do "Portugal tradicional", mito perdido numas brumas longínquas recuperadas pelos fumos de palco. Como eu sou do Porto, onde não há touros, o único fadista conhecido era o Neca Rafael e o único fado popular era o "já estás com os copos", não me lembro desta "tradição" assim tão portuguesa, mas percebo muito bem o que é que nos querem dizer.

Este mundo tradicional é modernizado para os dias de hoje, pelo espectáculo, em particular por vidas vividas como um reality show. Por isso mesmo, outra vingança póstuma do chefe do XVI Governo Constitucional foi ver uma das suas Némesis, Manuel Maria Carrilho - Némesis idêntica porque ambos fizeram a mesma "política cultural" moldada em Jacques Lang, só que com clientelas distintas -, a não perceber que o mundo lá fora tem ruído e que a imensa imagem que temos de nós próprios não o transforma em espelho. O dr. Lopes viu-se assim com alguém a seguir a sua escola de pensamento sobre a correlação entre derrotas eleitorais e conspirações comunicacionais.
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De facto, só a nossa curtíssima memória cívica nos impediu de ver até que ponto é mimético o livro do dr. Carrilho das queixas plangentes do dr. Santana Lopes. O chefe do XVI Governo Constitucional também era lesto em referir conspirações contra ele. Também ele declarou que havia agências de comunicação que eram pagas para o denegrir, assim como nomeava os jornalistas que, por cartão de partido ou conjugalidade, participavam no universal ataque de que se sentia vítima. O mesmo denunciou dezenas de conspirações equivalentes às do vídeo com o pequeno Diniz, desde a fotografia com a banda na cabeça, "fora do contexto", até às peripécias de uma sesta, ou da incompatibilidade da agenda do jet set com a agenda oficial. E não foi ele que ameaçou processar empresas de sondagens porque lhe prometiam resultados eleitorais negativos?

Exemplos absolutamente idênticos abundam. A única diferença é que o chefe do XVI Governo Constitucional nunca gozou da complacência com que o dr. Carrilho é recebido, muito para além da substância igualmente autista do seu livro, com artigos que lhe louvam a "coragem" da denúncia e respeitáveis professores de comunicação a levá-lo a sério, quando nada, insisto nada, é diferente na mecânica do seu livro com as elucubrações do "menino guerreiro".

Ambos demonstram a veracidade do ditado: "Se vives pela imprensa, morres pela imprensa." Quer um quer outro brincaram com um fogo perigoso, o da exposição pública com fins promocionais, ou seja, em política, eleitorais. A vaidade de aparecer corroeu-lhes o ser e, se em Carrilho isso é mais devastador devido à sua indiscutível obra intelectual, iguala-o a Lopes no produto final.

A vitória póstuma do XVI Governo Constitucional ao ver florescer o seu mundo em pleno socialismo não é um epifenómeno. O mesmo Portugal que o fez, desfê-lo como uma personagem do Purgatório de Dante dizia: "Siena mi fé, disfecemi Maremma." Mas desfê-lo para o recriar, desfê-lo porque havia uma eficácia que ele não lhe trazia nem podia trazer: o cenário politicamente mais correcto para o Portugal do dr. Lopes é o de um socialismo manso, que pague o custo retórico do "social" dos pobres, mas que deixe brilhar esse outro "social", o da nossa pobre classe média deslumbrada com expectativas mais caras do que as pode pagar. Foi já assim em Espanha, com Felipe González e os seus novos-ricos. A história é sempre irónica, quando não é trágica.

(No Público de hoje.)

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© José Pacheco Pereira
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