ABRUPTO

25.5.06


O QUE ESTAVA NA GAVETA

Muitas vezes se perguntou, depois do 25 de Abril, sobre os romances e outros escritos literários que estariam na gaveta sem poderem ser publicados devido à Censura. Hoje sabemos que não havia nada de significativo na gaveta, o que não deixa de ser surpreendente dada a duração da ditadura e o facto de alguns escritores e intelectuais estarem exilados, fora dos constrangimentos policiais do regime, podendo ter escrito textos para além da censura. Se exceptuarmos meia dúzia de poesias, só os textos clandestinos de autores comunistas, os contos "vermelhos" de Soeiro Pereira Gomes e a obra ficcional de Cunhal escrita na cadeia, o Até Amanhã Camaradas e o Cinco Dias, Cinco Noites, foram escritos para além da Censura.

Quer se queira quer não, a Censura exerceu o seu poder muito para além da sua realidade física, mostrando a sua enorme eficácia como instituição, provavelmente, e cada vez me inclino mais para essa avaliação, como a mais poderosa e eficaz instituição da ditadura. O caso português ganha em ser comparado com outros casos de literatura "clandestina", como a produzida pela Resistência francesa, ou pela "dissidência" soviética, onde toda uma tradição literária, poética, ficcional e ensaística, foi mantida sem interrupção, mesmo nos anos mais duros das grandes purgas estalinistas. Nas cozinhas e nas salas dos pequenos apartamentos urbanos, onde poucos cabiam sem se acotovelar, nas dachas periféricas, manuscritos, tiragens frágeis ou apenas a força da memorização mantinham uma vida literária de resistência que nunca o comunismo conseguiu destruir.

Não estando romances, nem novelas, nas gavetas dos nossos escritores da oposição, o que agora se verifica é que estavam cartas. A correspondência torna-se assim a revelação em grande parte por fazer sobre a vida portuguesa subterrânea, que só tenuemente chegava aos jornais e revistas, e que fluía com maior liberdade nas cartas do que nos textos para publicar, embora essa liberdade fosse também vigiada pela PIDE. A correspondência era controlada, as cartas desviadas nos CTT e interceptadas, de forma dirigida ou ao acaso. Várias prisões foram feitas a partir de cartas interceptadas e nas buscas policiais a correspondência era especialmente procurada.

Mas havia correspondência e o pouco que já se conhece mostra a sua importância como fonte ímpar para o conhecimento da época e também, nalguns casos, pelo seu valor literário e ensaístico. A publicação de vários grupos de correspondência, incluindo a de Luiz Pacheco com alguns dos seus companheiros, a excepcional série de cartas entre Óscar Lopes e António José Saraiva é agora acrescentada pela correspondência entre Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena, cobrindo os anos de 1959-1978, editada pela Guerra e Paz. O livro é obrigatório por todas as razões, por Sena, por Sophia e pelo Portugal cultural e político desses anos tristes e convulsos.

Personalidades muito diferentes, Sophia, prudente, calma e contida, e Sena agitado, infeliz e zangado com o mundo, trocam cartas numa época em que as cartas eram ainda importantes e não eram substituídas pelo telefone, cujo uso era escasso, porque caro, para longas distâncias e muito menos pelo inexistente e-mail. Escrever-se era primeiro que tudo um exercício de amizade e é essa a plataforma em que Sena e Sophia se "falam", escrevendo cartas.

De que falam? Do seu mundo, tão diferente em muitos aspectos do actual, a não ser nos comportamentos, e esse mundo é dominado pela literatura, pela política, pela vida pessoal de cada um, em particular quando emanava dos dois temas anteriores. É uma correspondência reservada, pouco íntima, mas que se solta na avaliação de sentimentos, de sentimentos vindos de fora, como as impressões de Sophia sobre o impacto que teve a sua viagem à Grécia.

Falam mais de política do que hoje é habitual, porque a política integrava-se na sua relação cívica e intelectual com o mundo. Nos anos da ditadura, sendo ambos oposicionistas moderados, ou seja não comunistas, a obrigação da política tinha um aspecto de exigência ética que é difícil de compreender nos nossos dias. Nas suas cartas aparece o dilema dos poucos intelectuais portugueses que estavam entalados entre a recusa da ditadura e a desconfiança activa com a hegemonia dos comunistas na cultura da oposição. Quer Sena, quer Sophia relatam vários casos de manipulação dos escritores portugueses pela rede nacional e internacional de apoios, prémios e promoção que favorecia o cânone neo-realista e a fidelidade ideológica em detrimento da qualidade literária. Sena chega a dizer de forma premonitória: "Agora estão os Cidades e os Pimpões contra mim, tempo virá em que os Saraivas se oporão a que eu tenha alguma cátedra" (carta de 1964).

Este isolamento político acentuava as quezílias nos meios literários e, na correspondência, essa eterna característica portuguesa (e não só) é bem retratada, em particular por Sena, que sofria de um enorme ressentimento por não ver o seu valor reconhecido como entendia dever ser. Sena era uma personagem muito mais controversa do que Sophia e as suas atribulações de exílio ainda acentuavam mais a sua permanente zanga com tudo o que era português, melhor, portuguezinho. O peso do exílio é uma constante nas cartas de Sena, que afirmava não "fazer profissão de exilado político inassimilável" e que dizia "comportar-se como brasileiro em tudo", acrescentando depois, com amargura, "sem abdicar em nada de ser o português que ninguém é mais do que eu" (Carta de 1962).

Falando na sua qualidade de poetas, de poeta a poeta, Sophia descreve a impressão que teve na sua viagem à Grécia em 1964: "foi ali a minha total felicidade", "encontrei na Grécia a minha própria poesia (...) encontrei um mundo em que já não ousava acreditar". Na correspondência de Sophia, estas são as páginas mais intensas, e dão, mais tarde, origem a uma discussão entre ambos sobre a tradução, que se percebe ter a ver com "ler" a Grécia. Sophia quer conhecê-la em traduções o mais próximas possível ao original e Sena, então a publicar a sua antologia de traduções, defende a recriação do texto. As traduções tinham um papel no trabalho de ambos porque eram uma das poucas formas de ganhar dinheiro com uma actividade intelectual e criativa, e o dinheiro faltava, em particular, a Sena.

Muito mais se podia escrever sobre esta correspondência, mas basta começar a ler qualquer carta para se perceber a sua importância para conhecer Sena e Sophia, mais o primeiro do que a segunda, e para se perceber o Portugal do século XX, claustrofóbico, pequeno e provinciano. Como Sena escreve, com dureza:

"Cada vez mais penso que Portugal não precisa de ser salvo, porque estará sempre perdido como merece. Nós todos é que precisamos que nos salvem dele."

(No Público de hoje.)

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NOTA: Fernando Venâncio chama a atenção para que havia mais coisas na gaveta.

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© José Pacheco Pereira
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