ABRUPTO |
![]() semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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25.5.06
![]() O QUE ESTAVA NA GAVETA ![]() Quer se queira quer não, a Censura exerceu o seu poder muito para além da sua realidade física, mostrando a sua enorme eficácia como instituição, provavelmente, e cada vez me inclino mais para essa avaliação, como a mais poderosa e eficaz instituição da ditadura. O caso português ganha em ser comparado com outros casos de literatura "clandestina", como a produzida pela Resistência francesa, ou pela "dissidência" soviética, onde toda uma tradição literária, poética, ficcional e ensaística, foi mantida sem interrupção, mesmo nos anos mais duros das grandes purgas estalinistas. Nas cozinhas e nas salas dos pequenos apartamentos urbanos, onde poucos cabiam sem se acotovelar, nas dachas periféricas, manuscritos, tiragens frágeis ou apenas a força da memorização mantinham uma vida literária de resistência que nunca o comunismo conseguiu destruir. Não estando romances, nem novelas, nas gavetas dos nossos escritores da oposição, o que agora se verifica é que estavam cartas. A correspondência torna-se assim a revelação em grande parte por fazer sobre a vida portuguesa subterrânea, que só tenuemente chegava aos jornais e revistas, e que fluía com maior liberdade nas cartas do que nos textos para publicar, embora essa liberdade fosse também vigiada pela PIDE. A correspondência era controlada, as cartas desviadas nos CTT e interceptadas, de forma dirigida ou ao acaso. Várias prisões foram feitas a partir de cartas interceptadas e nas buscas policiais a correspondência era especialmente procurada. Mas havia correspondência e o pouco que já se conhece mostra a sua importância como fonte ímpar para o conhecimento da época e também, nalguns casos, pelo seu valor literário e ensaístico. A publicação de vários grupos de correspondência, incluindo a de Luiz Pacheco com alguns dos seus companheiros, a excepcional série de cartas entre Óscar Lopes e António José Saraiva é agora acrescentada pela correspondência entre Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena, cobrindo os anos de 1959-1978, editada pela Guerra e Paz. O livro é obrigatório por todas as razões, por Sena, por Sophia e pelo Portugal cultural e político desses anos tristes e convulsos. Personalidades muito diferentes, Sophia, prudente, calma e contida, e Sena agitado, infeliz e zangado com o mundo, trocam cartas numa época em que as cartas eram ainda importantes e não eram substituídas pelo telefone, cujo uso era escasso, porque caro, para longas distâncias e muito menos pelo inexistente e-mail. Escrever-se era primeiro que tudo um exercício de amizade e é essa a plataforma em que Sena e Sophia se "falam", escrevendo cartas. De que falam? Do seu mundo, tão diferente em muitos aspectos do actual, a não ser nos comportamentos, e esse mundo é dominado pela literatura, pela política, pela vida pessoal de cada um, em particular quando emanava dos dois temas anteriores. É uma correspondência reservada, pouco íntima, mas que se solta na avaliação de sentimentos, de sentimentos vindos de fora, como as impressões de Sophia sobre o impacto que teve a sua viagem à Grécia. Falam mais de política do que hoje é habitual, porque a política integrava-se na sua relação cívica e intelectual com o mundo. Nos anos da ditadura, sendo ambos oposicionistas moderados, ou seja não comunistas, a obrigação da política tinha um aspecto de exigência ética que é difícil de compreender nos nossos dias. Nas suas cartas aparece o dilema dos poucos intelectuais portugueses que estavam entalados entre a recusa da ditadura e a desconfiança activa com a hegemonia dos comunistas na cultura da oposição. Quer Sena, quer Sophia relatam vários casos de manipulação dos escritores portugueses pela rede nacional e internacional de apoios, prémios e promoção que favorecia o cânone neo-realista e a fidelidade ideológica em detrimento da qualidade literária. Sena chega a dizer de forma premonitória: "Agora estão os Cidades e os Pimpões contra mim, tempo virá em que os Saraivas se oporão a que eu tenha alguma cátedra" (carta de 1964). Este isolamento político acentuava as quezílias nos meios literários e, na correspondência, essa eterna característica portuguesa (e não só) é bem retratada, em particular por Sena, que sofria de um enorme ressentimento por não ver o seu valor reconhecido como entendia dever ser. Sena era uma personagem muito mais controversa do que Sophia e as suas atribulações de exílio ainda acentuavam mais a sua permanente zanga com tudo o que era português, melhor, portuguezinho. O peso do exílio é uma constante nas cartas de Sena, que afirmava não "fazer profissão de exilado político inassimilável" e que dizia "comportar-se como brasileiro em tudo", acrescentando depois, com amargura, "sem abdicar em nada de ser o português que ninguém é mais do que eu" (Carta de 1962). Falando na sua qualidade de poetas, de poeta a poeta, Sophia descreve a impressão que teve na sua viagem à Grécia em 1964: "foi ali a minha total felicidade", "encontrei na Grécia a minha própria poesia (...) encontrei um mundo em que já não ousava acreditar". Na correspondência de Sophia, estas são as páginas mais intensas, e dão, mais tarde, origem a uma discussão entre ambos sobre a tradução, que se percebe ter a ver com "ler" a Grécia. Sophia quer conhecê-la em traduções o mais próximas possível ao original e Sena, então a publicar a sua antologia de traduções, defende a recriação do texto. As traduções tinham um papel no trabalho de ambos porque eram uma das poucas formas de ganhar dinheiro com uma actividade intelectual e criativa, e o dinheiro faltava, em particular, a Sena. Muito mais se podia escrever sobre esta correspondência, mas basta começar a ler qualquer carta para se perceber a sua importância para conhecer Sena e Sophia, mais o primeiro do que a segunda, e para se perceber o Portugal do século XX, claustrofóbico, pequeno e provinciano. Como Sena escreve, com dureza: "Cada vez mais penso que Portugal não precisa de ser salvo, porque estará sempre perdido como merece. Nós todos é que precisamos que nos salvem dele." (No Público de hoje.) * NOTA: Fernando Venâncio chama a atenção para que havia mais coisas na gaveta. (url)
© José Pacheco Pereira
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