ABRUPTO

11.5.06


MEMÓRIA, HISTÓRIA E RECUSA

O debate que periodicamente se esboça em Portugal sobre como tratar a memória dos anos da ditadura não é diferente do que atravessa os países que estiveram sob o domínio do comunismo até 1989. Cá e nesses países, como na Alemanha do pós-guerra, a questão é saber como tratar dos restos “históricos” desses regimes, casa, espaços, símbolos, estátuas, placas, livros, discos, filmes, objectos decorativos.

É compreensível que, enquanto a geração que viveu os efeitos da ditadura está viva, o tratamento da memória não seja puramente histórico, mas tenha um aspecto de denúncia, de pedagogia do mal, de recusa. Onde a mudança ainda está fresca, este é o aspecto dominante. Compreende-se por isso soluções como a da Casa do Terror e do Parque das Estátuas em Budapeste, utilizando a antiga sede da polícia política, que já fora a sede de uma organização nazi, assim como as estátuas retiradas dos lugares públicos, como monumentos destinados a lembrar e a condenar a ditadura comunista. Os museus do Holocausto, a começar pelo paradigma de todos eles o Yad Vashem em Jerusalém, têm função idêntica: mais do que registrar e preservar, a sua função é recordar para condenar. Organizam-se à volta de uma ideia, de uma interpretação moral da história e não da história em si. No seu interior há uma narrativa do bem e do mal, não uma mera exposição de uma época e, naturalmente, centram-se na repressão, na violência e na guerra, pretendendo de algum modo reparar as vítimas, denunciando os culpados.

Nestes museus e exposições, muito próximos dos acontecimentos que esconjuram, o modo como é tratada a memória é significativa da situação política de cada país. Por exemplo, enquanto que na antiga RDA, nos países bálticos, na Hungria e na República Checa tudo o que lembrava o regime comunista e a ocupação militar soviética foi retirado dos lugares públicos; na Ucrânia e na Rússia, assim como em várias repúblicas da antiga URSS, muito da estatuária e da nomenclatura urbana foi mantida. Na Rússia, as mudanças inicialmente foram mais radicais e depois foram travadas. A polémica com o eventual retorno da estátua de Dzerjinski, o fundador da polícia política dos comunistas, que foi derrubada em 1991, para o seu lugar central em frente à sede do KGB, é mais significativa da evolução do sistema soviético, do que muitas declarações retóricas de democracia. A ambiguidade reinante é patente no antigo Museu da Revolução de Moscovo, actualmente Museu de História Contemporânea Russa, onde um re-arranjo das peças existentes permitiu transformar o proselitismo comunista numa visão “histórica” desculpabilizadora. Os turistas que correm para os andares superiores, onde está acumulado o kitsch dos presentes a Staline, fazem-no com a mesma displicência folclórica com que compram na rua falsos emblemas do KGB. Os russos não acham a mesma graça.

O caso português, a trinta anos do 25 de Abril, já pode ser visto com outra distanciação, embora a regra da geração viva, ainda implicar que a ditadura de Salazar e Caetano não pode ser tratada apenas como pura história, e implicar um sentimento de respeito e reparação com as suas vítimas. Mas , a trinta anos do fim da ditadura, seria mais eficaz quer para a memória, quer para a história, quer para a recusa, perceber que o seu equilíbrio se faz cada vez mais pela história e que esta é a forma mais segura de fazer respeitar ou condenar o que merece ser respeitado e condenado. Sendo assim não me parece muito útil, nem realista, a reivindicação de transformar a antiga sede de Lisboa da PIDE, num museu da resistência, num momento em que não há recursos, nem disponibilidade nacional para aí criar uma verdadeira instituição. Seria preferível melhorar o que mais perto está de ser um memorial da resistência, o Museu da Fortaleza de Peniche, e dar-lhe uma dimensão para além da memória prisional. Não é em Lisboa, mas nada obriga a que tenha que ser em Lisboa, e nem sequer que a dimensão simbólica do local é menor do que a sede da PIDE.
The image “http://www.feriasoeste.com/galeria/PenicheForte.JPG” cannot be displayed, because it contains errors.
No centro espectacular do Museu permaneceriam as celas dos blocos prisionais que estão já abertos ao público, e que asseguram um número de visitantes considerável. A exposição das condições prisionais, dos trabalhos dos reclusos, e a história da fuga de Cunhal e dos seus companheiros em 1960, permitem mostrar a dimensão repressiva fundamental do regime que poderia ser complementada por materiais sobre as outras prisões, as torturas e as mortes da PIDE. Peniche seria o principal centro dessa memória pedagógica que motiva os que desejam a preservação da sede da PIDE. Mas podia-se ir mais longe, respondendo a outras exigências.

Há na Fortaleza todo um vasto espaço disponível, em ruínas ou em grande decadência, que podia servir para um repositório museológico mais vasto do meio século do Estado Novo. Penso aliás que numa prisão, que é ao mesmo tempo um monumento nacional e um local com interesse arquitectónico e paisagístico, se podia também recolher muito do espólio do Estado Novo para além da ideia de fazer um museu apenas da resistência. A componente que move os que querem uma pedagogia de recusa e de condenação, não se perderia, ao mesmo tempo que ali se poderia fazer o que não existe em lado nenhum: o embrião de um museu da nossa contemporaneidade, do século XX.

Do ponto de vista da história, a resistência não se percebe sem se perceber o regime e para o seu estudo é fundamental recolher muito material com valor museológico que está em risco de se perder. Algum desse material merece ser divulgado, para acabar com hiatos incompreensíveis como seja o facto de A Revolução de Maio de António Lopes Ribeiro não existir nem em vídeo nem em DVD. Tem sentido expor os cartazes do Estado Novo, as suas publicações propagandísticas, e os objectos que sobraram de um espólio que se dispersou, estátuas de Salazar, bustos dos seus notáveis, placas arrancadas, pensões da Legião, e memorabilia da Mocidade. Cartazes de campanhas como a do Trigo, os painéis dos Planos de Fomento, objectos oferecidos a Salazar e aos presidentes do regime, mesmo fotos das manifestações espontâneas, são o contraponto para se perceber a ecologia em que os portugueses viveram quarenta e oito anos. Está na altura de congregar tudo isso numa instituição própria que preserva a memória, permita a história e favoreça a investigação, sem apagar a recordação dos tempos negros da ditadura. Não se trata de relativizar a história, mas de começar o caminho para tornar o século XX compreensível para as novas gerações que nunca o verão com a dimensão ética e sentimental dos que foram seus protagonistas.

(No Público de hoje,)

*
[A mensagem seguinte refere-se à nota PODE-SE METER O COMUNISMO NOS MUSEUS?, mas tem a ver com esta matéria pelo que a coloquei aqui.)
Há muitos e bons museus dedicados ao período nacional-socialista na Alemanha.Aliás encontram-se em quase todo o país. Deixo-lhe alguns exemplos: o Centro de Documentacao nacional-socialista em Nuremberga, no "cenário" original dos Congresos do NSDAP, o Centro de Documentacao do Monumento ao Holocausto em Berlim, a Topografia do Terror em Berlim, o Deutsches Historisches Museum em Berlim, a Haus der Geschichte em Bona,o Museu Judaico em Berlim, o Museu Judaico em Frankfurt , os campos de concentracao de Dachau, Buchenwald, etc, etc, etc, etc. Isto sem referir exposicoes temporárias É injusto e factualmente incorrecto afirmar-se que nao existem reflexoes museológicas sobre os 12 anos de terror do Terceiro Reich.

(Helena Ferro de Gouveia)

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]