ABRUPTO

8.4.06


A PROVA DOS BLOGUES: AGUSTINA LIDA PELOS LEITORES DO ABRUPTO



Agora que o Abrupto entrou na historicidade pela mão de Agustina Bessa-Luís, com a prosa escorreita e encantatória a que nos habitou, não resisto, a propósito, enviar-lhe este texto respigado d'O Popular n.º IX, de 1825, respeitando a ortografia do vintismo.

(João Boaventura)

Roma he mui dócil para se conformar com as circunstancias. Quando a Mãe de Affonso Henriques se queixou ao Papa da prisão que seu filho lhe havia feito, o sancto Padre mandou o Bispo de Coimbra, então em Roma, que viesse a Portugal e ordenasse a Elo Rei que soltasse a Mãe e se emendasse; e no caso de desobediência pozesse Interdicto em todo o Reino: Assim foi, porque El Rei não fez caso do mandato do Papa. O Bispo fulminou o Interdicto e fugio, mas El Rei foi immediatamente a Sé e mandou aos cónegos que elegessem Bispo, e como elles recusassem lancô-os fora, e encontrando na Claustra hum negro que era clérigo, chamado Soleima, o ordenou Bispo e como tal fez que elle logo dissesse Missa. Sabendo o Papa deste facto mandou um Cardeal ao Reino para ensinar a fé a El Rei, que ele tinha por herege, e fazelo emendar de seus erros. El Rei recebe-o bem, mas diselhe que não precisava delle para nada, que se recolhesse e no outro dia falarião; o Cardeal chamou de noute os clérigos, excomungou o Reino e o Rei, e partio: El Rei soube do caso de madrugada, montou-se a cavalo e foi em sua seguida, encontro-o perto de Poiares, e agarrando-o pelo cabeção, tirando da espada assim o cumprimentou – Da qua a cabeça traidor.- Os da sua comitiva intercederão, e El Rei contentou-se em o trazer a Coimbra, aonde lhe fez desmanchar o que havia feito e prometter, que dentro em 4 mezes viria letra de Roma para o Reino nunca mais ser excomungado, tomando lhe em reféns um sobrinho, para cumprimento da promessa. Quando o Cardeal se apresentou ao Sancto Padre, elle o reprehendeo, por haver prometido o que somente a Sancta Sé podia dar; então o Cardeal lhe tornou:

“Santo Padre eu não digo letra, mas se a Cadeira de S. Pedro fora minha lha deixara e dera de boamente, por escapar de suas mãos; que se vôs vireis vós hum cavalleiro tam forte e espantoso como aquelle Rei, e vos tivera huma mão no cabeção, e a outra alçada para vos cortar a cabeça, e seu cavallo não menos alvoroçado hora com huma mão ora com outra cavando a terra, parecendo que que já vos fazia a cova, vôs déreis a letra e o Papado: por isso me não deveis culpar”. O Papa concedeo a letra e o Cardeal mando-a antes dos quatro mezes.


(O Popular, n.º IX, 1825)

*

(...) Confesso que foi a referência de Augustina a D.João II que me atirou ao teclado. D.João é o modelo de monarca exemplar da época preconizado por Maquiavel. É um rei que, apoiado na burguesia, como o fundador da dinastia, se torna absoluto a pulso e ferro! Muito havia a fazer, depois de um reinado como o de D.Afonso V! Que o digam o duque de Bragança e o de Viseu! É D.João, o "burguês", o impulsionador decisivo da expansão que sujava as mãos a comer sardinha "mui boa e mui barata!" Se Portugal desempenhou um papel de relevância na história deve-o a este rei! Como a da união das coroas ibéricas teria sido diferente caso seu filho D.Afonso não tivesse tido aquele acidente em alfarrobeira... "Morrio El Hombre" terá dito a rainha Isabel de Castela aquando da morte dele.

Não sei até que ponto os mestres de D. Sebastião, (como os de D.Afonso V) principalmente os irmãos Câmara, terão ou não modelado a sua personalidade. Sabe-se é que desde o início, o seu reinado é uma corrida para o abismo. Para além de ter frequentes paragens, acessos de cólera senil (principalmente quando era contrariado), e um orgulho encarniçadamente invejoso (não foi só D.Duarte que foi bem maltratado, veja-se D.Luís de Meneses, o herói da índia, e D. António Prior do Crato) o que mais impressiona é o mundo de fadas e Quixotes em que se movia. Atente-se nas cartas que existem escritas dele... Uma compilação, um emaranhado de pensamentos pretensiosos, confusos e muitas vezes contraditórios entre si. A saga da sua correspondência com os embaixadores é fascinante. Os avanços e recuos em vários contratos de casamento negociados ao mesmo e em vários tempos ou para adiar eternamente a questão matrimonial ou para garantir "tropas, biscoitos, dinheiro e munições". Emociona, de facto, a grande dedicação dele à causa Portuguesa, ainda para mais sabendo que é loucura... Tivesse sido outra que não a do Velho do Restelo...

Vejam-se as descrições da riqueza dos ornamentos da fidalgia portuguesa a embarcar em Lisboa rumo ao Norte de África. Parecia um desfile, uma procissão, uma festa (aliás parece que foram encontradas centenas de guitarras entre os despojos portugueses). Parece que se empenharam valentemente. Pior ficaram depois com os resgates que tiveram de pagar. Penso que a questão dos "assomos de pedantaria" naquela época ainda não eram predominantemente burgueses... Os novos fidalgos, os que o rodeavam eram apenas os que o bajulavam, ou os que em determinadas ocasiões conseguiram ainda ser mais loucos e temerários do que ele (sim, não era a primeira vez que D.Sebastião iria pisar solo Africano!).

Vou passar por cima de prolongadas referências à falta de disciplina, organização e efectivo comando no exército. Em vésperas da batalha, quando alguns fidalgos se atrevem a sugerir timidamente a D.Sebastião que esperasse ao menos um dia para dar batalha, mantivesse aquela favorável posição onde o exército acampou até porque havia informações que Almelique estaria a morrer. (isto depois de: 1) ter arranjado um fraco pretexto para guerrar Almelique, 2) ter forçado inutilmente o exército a uma aventura por terra onde esteve prestes a sucumbir de fome antes mesmo de chegar a combater). Ainda assim se ouviam vozes bajuladoras a gritar «Avante! Avante, senhor, que tudo é nosso!». Pois claro, nem D.Sebastião queria ganhar a batalha a um rei morto! (Almelique, a propósito morreu na sua tenda durante a batalha).

O que mais impressiona é a apatia da elite de então. A maior parte dos fidalgos tinham plena consciência da loucura do rei, do abismo para onde caminhava e arrastando o reino com ele... "Pois se assim é Pai Nosso pelo Rei, pelo Reino e Pelos Vassalos", faço minhas as palavras do barão de Alvito. Não sei se, juntamente com a descrição do embarque, se poderá fazer outro paralelismo com os tempos actuais. Bom, talvez seja melhor não falar disso... Ah! Estivesse este rei rodeado de práticos burgueses com menos interesses a defender...

Mais interessante ainda é o relato dos preliminares da batalha, das lançadas que deu em vários fidalgos, do quanto se enfureceu em "trabalhos de sargento" (porque num pelotão faltavam dois ou estavam a mais dois homens, ou porque o seu apurado sentido notou alguma outra qualquer imperfeição) e da ordem expressa que deu para só se acometer ao seu sinal. Uma paragem do rei ainda fez perder a vida a alguns homens estácticos graças às balas dos inimigos que já assobiavam. Que o diga Alexandre Moreira a descer do cavalo de espada em punho. "Sejam todos testemunhas de como me apeio a morrer porque hoje não é dia de outra coisa!" Quando o "rei-sargento" (fosse ele um Frederico I...) dá ordem para o exército avançar, dá-a só a uma parte do exército, esquece-se de outra, do lado de lá, onde os homens continuavam estáticos a tombar mas obedecendo às ordens do rei. Bom, os exemplos do discernimento aristocrático de D.Sebastião são tantos que teria de encher mais umas páginas. Já me alonguei demasiado. Deixo apenas as supostas palavras de D.Felipe II quando terminou o encontro em Guadalupe com o sobrinho (por acaso, devido aos orgulhosos arrebiques deste, o encontro até podia ter acabado bem pior...): "vaya en hora buena, que si venciere, buen yerno tendremos; y si fuere vencido, buen reyno nos vendrá".

(Francisco Felizol)

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