ABRUPTO

13.4.06


POLÍTICAS PARA FAZER OPOSIÇÃO



Deslocou-se o PS para o "centro", onde tradicionalmente habitava o PSD, ocupando um espaço político que o asfixia? Como se pode fazer oposição contra um governo que parece realizar com mais determinação as reformas que sempre foram defendidas pelo PSD? Não é possível, ou é difícil, tomar uma posição distinta, que demarque o PSD do PS? Todos os dias é possível encontrar este tipo de afirmações, que me levam a uma reacção do género: tretas, bullshit. Quisesse o PSD e todos os dias se perceberiam claras e distintas as diferenças, onde há diferenças. O problema, também tão claro e distinto, está no "quisesse".

Exemplos? Não faltam, embora exijam coragem e nalguns casos rupturas com o passado, mais com as atitudes tomadas do que com posições programáticas. E não faltam exemplos, porque o PS pode andar na dança das cadeiras entre os lados da sala, mas verdadeiramente não se senta em nenhuma, a não ser naquela em que já está sentado, uma cadeira onde os pés são os impostos, e as costas e braços o Estado. O primeiro-ministro quer fazer dessa cadeira um móvel de design, inteligente e com luzes a brilhar, mas é mais deslumbramento do que substância.

Vamos aos exemplos. Deixo de lado todo o terreno habitualmente mais debatido da configuração do Estado e do seu papel na economia. Não porque não seja decisivo, mas sim porque me parece aí evidente que o que falta à oposição é assumir uma política liberal consistente, menos presa à vulgata do liberalismo teórico e mais concentrada num esforço continuado para diminuir sempre o Estado onde ele não é preciso, encontrar sempre soluções do lado da sociedade, privilegiar a iniciativa da liberdade individual e não a da engenharia social. Aí, as distinções possíveis, não as que existem hoje, mas as que deveriam existir, são tão flagrantes que não vale a pena estar a arrombar portas abertas: o país precisa de mais liberdade e de mais liberalismo.

Deixemos também de lado as chamadas "questões fracturantes" que, ou são folclore radical que chegou ao mainstream pela máquina destiladora do "politicamente correcto", ou então são matéria de consciência e de vida privada, em que o Estado não devia meter-se. É um sinal da degradação da nossa vida pública e do esvaziamento político dos principais partidos portugueses que essas "fracturas" tenham tido a dimensão que tiveram, se tornassem, e regularmente se tornem, questões centrais da agenda política. O máximo resultado que dão é produzirem mais legislação de engenharia social, que manterá a sociedade exactamente como estava antes.

Exemplos de zonas de oposição? Comecemos por uma, tão crucial quanto ignorada e reprimida: a política externa, a visão global de uma política externa no mundo tal como é hoje. Defrontando questões como o Iraque, a Bósnia, as relações transatlânticas, a construção europeia (que ainda é uma questão de política externa), as relações com os PALOP, onde não existe hoje um corpo de pensamento, mas apenas continuidades que passam por ser "política de Estado", ou meras posições oscilantes ao sabor da decisão de outros. Um país que tem tropas na Bósnia, que participa nominalmente no esforço de reconstrução do Iraque, que alterou a sua Constituição para aprovar um Tratado Constitucional, que tem um problema simbólico de identidade com Espanha, que tem uma larga comunidade emigrante pelos cinco continentes, que partilha uma das línguas mais faladas no mundo, pensa muito pouco no que se está a passar à sua volta.

Comecemos com Espanha. Não é preciso ir mais longe - Espanha está a mudar muito devido à crescente força das suas autonomias, que os entendimentos com a ETA vão fortalecer. O desenho político do Estado espanhol está muito mais fragmentado, e se é fácil aos portugueses encontrar uma Espanha unitária na economia, já é cada vez mais difícil encontrá-la na política externa, em que Zapatero causou perplexidades e estragos a um caminho de "grande potência" que Aznar seguia. Que implicações tudo isto tem para nós? Não estudamos, não conhecemos, não sabemos e por isso o "Espanha, Espanha, Espanha" do primeiro-ministro é tão vazio como o pragmatismo sem princípios que passeou por Angola. Em todas estas matérias não há hoje doutrina, mas uma sucessão de posições ao sabor da opinião pública.

Passemos para a questão do terrorismo apocalíptico dos nossos dias, associado a todos os problemas confrontacionais de carácter cultural e civilizacional com o fundamentalismo muçulmano, envolvendo a questão israelo-palestiniana, a situação no Iraque, e, no limite, o fosso entre parte da União Europeia e os EUA. Aqui sei mais o que pensa o PS de Sócrates (que não é o mesmo do PS de Gama), do que sei o que pensa o PSD, porque este deixou degradar o seu pensamento com medo da impopularidade de algumas posições que nunca defendeu como devia - como seja a participação de Portugal na cimeira dos Açores. Mas também sei que em todas estas matérias se exige uma ideia estratégica. E a haver um esforço de clarificação, perceber-se-á como é fundamental alicerçar uma oposição à política externa socialista, que encontra em Freitas do Amaral um dos seus expoentes mais radicais. Que melhor terreno para os partidos de oposição para fazer oposição, onde ela faz falta, numa matéria como a política externa, onde a tradição de consenso é hoje em grande parte feita de ambiguidades?

Querem outro exemplo de diferença numa área crucial para o futuro e qualidade da nossa democracia e do espaço público? A defesa da privatização total dos órgãos de comunicação social do Estado. Aqui o PSD já teve posições muito distintas, tendo já defendido na liderança de Marcelo Rebelo de Sousa essa privatização total, depois, com Barroso, recuou. O historial prático não é brilhante: enquanto governo foi tão estatista como o PS, controlou a comunicação social pública como o PS, mas tem a seu favor nesta área a privatização de uma parte da comunicação social pública e a abertura do espaço audiovisual ao sector privado. Há muitas razões de fundo para olhar para o sector da comunicação social pública de modo inteiramente distinto daquele que é habitual hoje. Há razões políticas, culturais, económicas e tecnológicas, para se fazer essa mudança, que é, aliás, inevitável por causa da revolução na produção, gestão e divulgação da informação e do entretenimento.

Muitos outros exemplos de diferenças em que se podem alicerçar políticas de oposição necessárias apareceriam se olhássemos para o nosso país tal como ele é: um tecido desigual de muito arcaísmo e pouca modernidade, com tendência para que a modernidade seja moldada pelo arcaísmo, um misto de práticas subdesenvolvidas, com muito escassas "boas práticas", com pequeno enraizamento social. O Governo PS mostra pouca sensibilidade com esta realidade, deslumbrado que está pelo brilho tecnológico de receitas sem qualquer correspondência com a nossa realidade social.

Aqui há uma verdadeira cornucópia de linhas de actuação alternativas: desde a afirmação crucial do papel da mentalidade empresarial, que para se gerar da escola para o trabalho, implicaria mudar, e muito, as velhas universidades e pôr em causa os seus poderes corporativos; até à formulação de uma nova política agrícola, que também se tornou terreno apenas de práticas de resistência ou de adaptação aos subsídios europeus e que precisa mais do que nunca de uma visão de conjunto. O mesmo se pode dizer da necessidade de, de uma vez por todas, mudar o centro da política de "cultura" estatal, baseada na subsidiação, a favor de uma distinção entre políticas patrimoniais e políticas de animação e educação, que ganham em ser realizadas por outro tipo de ministérios, como o da Economia e da Educação.

O país está a entrar num novo desenvolvimentismo ecológico, ou seja a utilizar argumentos que eram clássicos dos grupos ecológicos, como seja a crítica às energias não renováveis, para criar áreas de negócios "verdes" que trazem consigo novos riscos e pressões ambientais que ninguém quer tratar como tal. É o caso da desaparição progressiva da paisagem natural com a instalação maciça de parques eólicos. Esta nova economia "ecológica" fará tantos estragos como a antiga se não se travar a corrida para o lucro predador que já está em curso, e não será do PS que virá essa preocupação.

Depois, a agenda da economia, no sentido lato de "economia política", não é a dos jornais económicos, como pensam os yuppies socialistas e sociais-democratas. Falta nessa agenda muita coisa que não pode ser ignorada na acção política: o mundo do trabalho, o mundo das micro-empresas, a agricultura, o novo tecido social gerado pelas mudanças económicas, desde o impacte do desemprego nas expectativas de vida, as novas formas de conflitualidade social, até aos problemas gerados pela emigração, a que fechamos muitas vezes os olhos.

Não faltam, como vimos, muitas áreas em que se sabe o que o PS, os seus Governo e primeiro-ministro pensam, fazem ou não fazem e até onde vão. Ora, toda uma outra visão de Portugal existe e faz diferença. Esse Portugal precisa de oposição, precisa de alternativas. É verdade que muitos dos exemplos que dei são polémicos na oposição, porque escapam ao terreno comum em que PS e PSD têm gerido, muitas vezes em continuidade, o Estado. Mas se não se quer mesmo morrer asfixiado e dar razão aos teóricos da ocupação do "espaço político" tem que se fazer uma revisão profunda em todas as áreas fundamentais da política. Uma revisão do que se fez, das posições tradicionais tidas no passado, e dos problemas do presente. Se tal for feito, ver-se-á como há mais razões, históricas, programáticas e ideológicas, para defender estas alternativas do que para andar a mexer por turnos o mesmo caldeirão.

( No Público.)

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© José Pacheco Pereira
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