ABRUPTO

6.4.06


NUNCA É TARDE PARA APRENDER: HOMENS, NAVIOS E SOCIEDADE

In Which we Serve (Sangue Suor e Lágrimas, que existe numa colecção de DVD portuguesa, os "Clássicos do Cinema") de David Lean e Noel Coward é um típico filme de propaganda de guerra. Feito a partir da história do HMS Torrin, um contratorpedeiro inglês afundado ao largo de Creta pela aviação alemã, é uma apologia da Marinha de Guerra, com os tripulantes a brindarem ao navio na ceia de Natal, a gritarem do salva vidas "Hip, hip hurrah!!" quando ele se afunda, terminando na cena final com um "God bless our ships and all who sail on them". Numa ilha, admiram-se os marinheiros, e numa ilha sitiada, como estava Inglaterra em 1942, a Marinha era então o único ramo das forças armadas em que a supremacia inglesa face aos alemães era incontestável. Até aqui, o que se espera.

Film stillMas quando se vê o filme hoje, para além dos anacronismos, como um encarregado dos estaleiros a dirigir os operários de colete e gravata, o que é mais interessante é o retrato não intencional da rígida estratificação social inglesa. Mostrando as famílias do comandante, dos oficiais e dos marinheiros, entra-se em mundos totalmente diferentes, estratificados e estanques, e isso é a marca típica de Noel Coward que escreveu o guião e interpreta o comandante. Vivem diferente, em sítios diferentes, falam de forma diferente e cada um sabe as suas distâncias. Não se misturam. Quando o comandante e um marinheiro, cada um com as suas mulheres, se encontram num comboio (que, como o navio, força um terreno comum), o marinheiro levanta-se para o cumprimentar numa carruagem de terceira classe, enquanto na cena imediatamente a seguir, o comandante aparece na carruagem-restaurante, numa mesa servida com porcelana e talheres de prata. Sempre dois mundos. Um stiff upper lip, outro moldado pelas paixões humanas, os marinheiros riem-se, embebedam-se, choram. Noel Coward nada.

Em plena guerra e num momento muito difícil, o cimento que une os ingleses é o combate, personificado no filme pelo navio, metáfora do presente, mas também do passado, metáfora da Grã-Bretanha. Mas dentro do navio e fora dele o sistema de convenções permanece intacto. O comandante sabe de cor todos os nomes da sua tripulação, de que tem que cuidar até ao limite da sua vida, mas entre ele e os seus marinheiros há deferência e respeito, há hierarquia (e não só a da patente), e ordem, militar e social. A classe dirigente inglesa sente solitária o peso de todas as responsabilidades, e nisso é inexcedível. É capaz de colocar, de um dia para o outro, meninos estragados pela vida e que pouco mais sabem do que disparar aos faisões na Escócia, a mostrar a mais absoluta coragem atirados de paraquedas para as montanhas dos Balcãs, ou a dar o exemplo na primeira linha de um assalto de infantaria na Flandres. Mas o mundo deles vai junto, como acontecia com os oficiais que levavam o mordomo atrás com as malas.

Nenhum americano ou francês poderia fazer este filme sem que aparecessem dois sentimentos que estragariam completamente a fleuma de Coward: os americanos não deixariam de retratar a pulsão democrática para cima, a escada das "oportunidades" e os franceses não deixariam de ridicularizar os seus nobres, ambas atitudes comuns nos filmes da década de trinta.

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Não se "dispara" aos faisões, "atira-se" aos faisões (ou caça-se faisões, sem "aos"). E não na Escócia: faisões e perdizes é mais no Sul. Na Escócia, a caça de penas por excelência (em oposição à caça de pêlo e grossa, lebres, coelhos, veados) é o grouse (em rigor, red grouse, Lagopus Lagopus Scoticus), o supra-sumo da caça porque exclusivo da Escócia e impossível de criar em cativeiro, portanto exclusivamente bravo.

Não que isto faça qualquer diferença aos seus comentários sobre o filme, mas, aprender por aprender ...

(Frederico Pinheiro de Melo)

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Outro belo exemplo que os britânicos nos dão é a maneira como são recordados e homenageados aqueles que lutaram pelo seu país. Na mais pequena vila ou aldeia há um monumento aos mortos em combate. Erigidos, na sua maioria, após a I Grande Guerra (1914-18) continuam ainda hoje, quase 100 anos depois, a ter flores frescas que associações e cidadãos anónimos lá vão depositar.

(José Machado)

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© José Pacheco Pereira
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