ABRUPTO

2.4.06


NUNCA É TARDE PARA APRENDER: ERUDIÇÃO, MELANCOLIA E INDOLÊNCIA

Henry Hitchings, Defining the World (The Extraordinary Story of Dr. Johnson's Dictionary)

Henry Hitchings Defining the World (The Extraordinary Story of Dr. Johnson's Dictionary) Em pleno trabalho no seu Dicionário, já atrasado e apenas com as letras A-C prontas (e já tinha ido mais longe do que o nosso dicionário da Academia, o grande não o pequeno, que ficou só na letra A, de A a Azuverte) e com aquele fastio que às vezes dá a meio de uma obra complexa, Johnson deixou-se envolver por essa estranha condição, a melancolia. A melancolia teve no século XVII o seu grande clássico, Robert Burton, mas o Dr. Johnson foi um praticante desse "estado de alma" que, muito justamente, os seus contemporâneos consideravam uma doença, "a kind of madness in which the mind is always fixed in one subject". Um dos vários retratos que Reynolds fez de Johnson dá bem essa dimensão obsessiva, mostrando-o não como clássico e repousado leitor, em que a leitura é um lenitivo para o espírito, mas como um leitor compulsivo, devorando fisicamente o livro, sem distanciação. Conheço muito poucos retratos de leitura que sejam deste tipo e Reynolds só o pode ter feito porque Johnson era mesmo assim.

O Dr. Johnson também pensava que a sua melancolia era uma doença, uma forma de loucura: "I inherited a vile melancholy from my father, which has made me mad all my life, at least not sober." Mas há um aspecto da melancolia de Johnson muito próprio, o seu pavor pela indolência, o medo de ser preguiçoso no seu trabalho. É difícil que um homem como Johnson que, quer como leitor, quer como autor, e em particular como autor de uma obra como o Dicionário que lhe exigia um esforço e concentração enormes, pudesse ter dúvidas sobre a sua dedicação ao trabalho. É certo que ele fazia uma correlação entre a ocupação e o combate á melancolia, dizendo ao seu biografo que "employment, sir, and hardships, prevent melancholy", e escrevendo que "melancholy, indeed, should be diverted by every means but drinking", mas há mais do que parece à primeira vista nesta obsessão com a indolência. É exactamente pelo tipo de trabalho erudito a que ele se dedica, pelo facto do Dicionário ser uma obra que resulta directamente dum imenso volume de leituras, e que a sua "escrita" tem exigências de completude incontornáveis - não é suposto faltarem palavras básicas (como ao nosso pequeno dicionário da Academia falta "robalo" e "hipertexto", entre muitas outras) - que a dimensão do trabalho por fazer convoca o risco da indolência todos os dias. É que fazer um Dicionário é "a kind of madness in which the mind is always fixed in one subject".

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Mesmo nos dias de hoje em que a psiquiatria se afirma como uma disciplina científica os chamados "males da alma" continuam a ser olhados com apreensão e estão consistentemente "sob suspeita". Como tal considerá-los doenças é sempre conveniente: primeiro porque os torna excepção e desvio, e depois porque pressupõe tratamento e cura. Se hoje não se morre de amor como no século XIX, nem se sofre da melancolia do século XVIII, sofre-se por exemplo de depressão: uma conveniente etiqueta que se aplica a, e correndo o risco de generalizando nem sempre ser precisa, variados estados de alma que fujam à esperada felicidade que a nossa sociedade consumista e imediatista põe ao nosso dispor 24 horas por dia. Assim, um luto mais prolongado do que o velho ditado "a vida continua" prevê, uma mudança de nível de vida menos bem aceite, uma traição dolorosa que fere lá onde não se sabia que podia ferir, encontram rápida, discretamente e sob patrocínio de todos os bons amigos, alívio e promessa de dias melhores no Prozac e no Xanax. "... (It) should be diverted by every means but drinking". Como agora.

(J. )

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© José Pacheco Pereira
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