ABRUPTO

8.4.06


AGUSTINA BESSA-LUÍS
FAMA E SEGREDO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL


Há em Filipe II uma obstinação comovida para obter as coisas que ama. Gosta do luxo e de parecer bem, porque isso afirma a sua dignidade. Não creio que fosse homem de grande estatura, a este respeito calam-se os que descrevem os seus atributos e traços de família. Mas, como quem se enfada de não ter crescido, punha no vestir grande apuro e devia dar uma impressão de graça e compostura. Porque com a gravidade da atitude andava decerto uma fraqueza pelo que é belo, as flores e as mulheres. A sua terceira mulher, a francesa, filha de Catarina de Médicis, desmaia ao vê-lo, tão severo é o retrato que lhe fizeram do monarca. No retrato de Sanchez Coelho, que está no museu do Imperador, em Berlim, nota-se bem que Filipe II era de estatura menos que mediana, com os longos braços de D. Manuel que lhe chegavam quase aos joelhos. Mas é um homem belo, com os traços finos da mãe e que pela compostura retraída e orgulhosa procura compensar a altura que lhe falta. No retrato de Hans Eworth, que devia ser um pintor de pouco talento, dá para perceber a pequenez do rei que se encontra de pé junto de Maria Tudor, sua segunda esposa, que está sentada talvez para não demonstrar que é mais alta que o marido. O embaixador veneziano, Michele Suriano, quando Filipe II tem já trinta e três anos e se casa com Isabel de Valois, que tem dezasseis, diz: “Ainda que não seja alto, está muito bem formado e proporcionado, e veste com apuro e tanto gosto que não se pode ver coisa mais perfeita”. No entanto, é dum orgulho tão frio que chega a ser desabrido.

É este parecer, tão reiterado que se tem por natureza cruel, o que primeiro impressiona. Daí que o primeiro encontro com a Valois dê ocasião a anedotas maliciosas. Como aquela em que, vendo a jovem princesa a olhar para ele com atenção, lhe pergunta duramente: “Que está a olhar? Para os meus cabelos brancos?”

Não contou com a educação à francesa, mais livre e desenfadada do que a das mulheres da corte espanhola, rígidas e sem brilho. Catarina de Médicis teme pela saúde da filha, que não sai nem pratica desporto, além de que gosta mais de dormir do que de mover-se. O regime da corte espanhola não é propício a um bem-estar. Adoece e sangram-na, porque os médicos pouco mais sabem fazer. Catarina manda-lhe remédios aconselhados pela sua privança de doutores e curandeiros. Começa aqui a lenda negra de Filipe II, atribuem-lhe crimes do filho D. Carlos que é desequilibrado e doente. A juventude da madrasta e enteado favorece as intrigas, mas é de crer que o rei não esteja muito a par desses enredos de antecâmara. Também não terá muita paciência para a esposa, limita-se a deixá-la à vontade, muda a corte de Toledo para Madrid. Agradando-lhe livra-se de a aturar. Mas Isabel, iniciada cedo demais na vida conjugal, ou por compleição doentia, ou ainda porque estranha o país, a corte e o clima, e até a religião, cai enferma. Recobra a saúde, graças talvez à sua pouca idade para se deixar vencer por desastres do corpo e da alma.

Dá à luz uma menina, Isabel Clara Eugénia, que acabará por ser a luz dos olhos do pai, a sua aia, a sua enfermeira e que ele casa com o austríaco, que ele sabe não lhe dará filhos. O amor que lhe tem, o medo de que ela acabe em desastre de parto, como a mãe, com a má compleição das de Avis para ter filhos, dita-lhe a precaução extraordinária e obcecada. Ainda que Filipe II diga que gostava de ter um filho (D. Carlos é a vergonha do seu sangue e da corte inteira), alegra-se com o nascimento da princesa e ensaia mesmo tê-la nos braços como uma boneca. É duma ingenuidade tocante quando não se propõe ser rei de todas as Espanhas.

Morre-lhe a mulher, Isabel de Valois, e definitivamente Filipe II parece estar livre dessa teia de casamentos em que foi envolvido desde os seus dezasseis anos. D. Carlos morre também depois dum processo escabroso que envolve alta traição e do qual o pai sai maltratado na honra e no coração. Não se sabe se Isabel de Valois, primeiro prometida a D. Carlos, desempenhou algum papel naquele drama que o rei conduz com a sua frieza habitual que dá azo a que o tomem por desalmado. Não o é. É simplesmente tímido nos momentos graves e os homens acobardam-no. Até o pobre D. Carlos, encarcerado, no auge do desespero, tragando um anel para se suicidar, é usado para ser criada a lenda régia. Filipe II será para a História, feita por embaixadores e partidos que pagam a espiões de más contas e más informações, um tirano acabado.

Ele ama as mulheres, sente-se protegido com elas, vive com elas num limbo que chega ao incesto mas nunca à desonestidade confessada. A bela D. Joana, que chegaram a querer casar com o sobrinho meio louco, não se separa nunca do soberano. Foram sempre muito unidos, muito íntimos; e tanto que houve suspeita de amores entre eles, e Carlos V mandou que lhes separassem as casas. O rei vê nela a figura da mãe ou simplesmente lhe agrada aquele atalho que conduz à infância perdida onde tudo era no feminino, festas e alegrias, caprichos e virtudes.

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Era Filipe II, como diz Gregório Marañon, “um bom menino, mas pouco inteligente”? A prova de que era bom é que era sempre enganado pelas mulheres e pelos confidentes, pelos amigos. E as lágrimas cujas nódoas ficaram nas cartas que escrevia às filhas. Os ditos que lhe atribuem, com humor de improviso, decerto não eram dele porque não o vemos rápido no replicar nem engenhoso na crítica. Catarina de Médicis que foi sua sogra, tinha mais firmeza no deliberar. Estava quase na hora da morte e reagiu como uma rainha à notícia do assassinato do duque de Guise: “Às coisas feitas devem-se tomar medidas”. Verdade seja dita, nenhum poder está preparado para os grandes acontecimentos. Filipe II, de quem Torneron, um cronista francês, diz que ele não admitia nenhum punhal senão na sua própria mão, escusando assim Deus de qualquer responsabilidade na política. Mas não é totalmente verdade. O rei, hesitante e pacífico, aproveitava as situações mas não as provocava.

© Guerra &Paz editores, Agustina Bessa-Luís. Reprodução Interdita.

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