ABRUPTO |
![]() semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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7.4.06
![]() AGUSTINA BESSA-LUÍS FAMA E SEGREDO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL Aos catorze anos D. Sebastião era vaidoso como o pote da leiteira de Gil Vicente. Era inteligente, vivo, confuso, como toda a criança malcriada mas recebida com tolerância porque responde pela sobrevivência dum povo. É difícil, para quem não foi nascido e criado na integridade cavalheiresca da monarquia, avaliar desse acatamento solene perante a majestade dum soberano. D. Sebastião era o rei, reconhecido e sagrado. Há um sabor de traição num simples desacordo até de etiqueta. Um fidalgo morre sem acusar de injustiça o seu rei. Morre inocente mas não vence o escrúpulo de deixar nome de inimigo do rei. Hoje, com o manual da psiquiatria muito conferenciado num século de debates entre o normal e o patológico, é mais fácil percorrer os caminhos da História e trazer à luz os seus personagens. D. Sebastião foi tratado como um enfezado capitão de delírios e de toscas ambições; ou então como o seu oposto, um rei em tudo distinto, arrebatado pelos ideais colhidos nas memórias doutros Césares. Não faltou quem o equiparasse aos grandes de Roma e lhe pusesse na mão o ceptro duma rainha destinada a ser garantia da civilização. Nem uma coisa nem outra. D. Sebastião foi vítima do que se chama uma situação vital mal suportada com origem possivelmente num facto que se interiorizou até ao delírio, por exemplo, o afastamento da mãe aos quatro meses de idade e que ele nunca mais viu. D. Joana era de feitio seco e mal encarado, isso nós sabemos. A sua ambição diminuía os sentimentos de família para dar prioridade aos interesses do Império. Isso é comum nos clãs que se tornam poderosos, ainda mais pela força tentaculosa do dinheiro e da religião. Mas, sobretudo, a compleição genética de D. Sebastião é importante e vai além de todas as condições emocionais desde a infância até à puberdade. Ele é um maníaco destinado a uma ensombração de ideias que resultarão na perda do reino. A sua incapacidade de atenção faz dele um aluno que pode ter um período brilhante em que a linguagem é rápida e imaginativa, seguida de prolixidade na desorganização do pensamento com propósitos desordenados. A expansão do humor com a convicção de tudo conseguir, pode alternar com uma agressividade exasperada. Como a que D. Sebastião manifesta a sua avó D. Catarina, dando aso a que ela se sinta mal e perca os sentidos. Um sintoma advertido pelos médicos é o da regulação térmica. D. Sebastião é acometido de frio intenso, é preciso cobri-lo e aquecê-lo, o que dá origem a ditos irónicos, como o de tratarem o seu casamento com frieza. Esta é uma obsessão da família carnal e política. A saúde do príncipe parece não dar cuidados de maior, com excepção das perdas nocturnas e uretrite crónica cuja causa pode muito bem ser mais secreta do que se aventura. O estado de frustração do rei é manifesto e Alcácer-Quibir regista o seu clima mais alto. A crise pode manifestar-se na criança de alguns meses separada de sua mãe durante um largo período. A sua avidez afectiva pode tomar um carácter agressivo em relação ao meio envolvente. Não é de afastar em D. Sebastião um conteúdo homossexual, o que constituiria uma perturbação profunda vinculada ao ideal do eu narcísico. O esforço que D. Sebastião faz para corresponder às expectativas do reino, esforço físico e moral que o leva a usar da caça e dos exercícios de campanha desmesuradamente, chega a ser comovente. É um jovem bem constituído mas cujo conflito interior está na base duma tristeza que iria ser-lhe fatal. Nada há que o possa salvar; e ao país, com ele. …………………………………………………………………………… Eu sempre disse que os grandes mestres não são próprios para educar. Porque o seu exemplo acabrunha quem não tem ânimo ainda para entender a grandeza. D. Sebastião lia as proezas de Carlos V com tal despeito que se tomou da obsessão de lhe merecer o parentesco e o destino. A impressão que dá é a dum bom aluno de artes que não lhe competiam, como a da guerra. O facto é que se prepara para a batalha e procede na mesma batalha duma maneira desordenada; sobressai o tipo neurótico, e, apesar da extravagância do seu comportamento, apesar da sua técnica do imaginário e de fingimento, ele não deixa de se adaptar à realidade. O rei compreende que a morte está presente e que não lhe pode escapar. A famosa frase “morrer, mas devagar” que, a ser autêntica é uma das mais belas que se podem proferir num momento em que o delírio atinge o seu auge, o delírio da morte, pode pertencer ao plano do célebre conto do rei vai nu. Gracián conta a história com muita fantasia e redobrado malabarismo de palavras. Parece D. Sebastião aquele caso de tecedores de maravilhas que se propuseram bordar um pano com que ele um dia se cobrisse. Ao longo das jornadas do trabalho, que na verdade não era nenhum, o rei mandou o criado, o aio e o mordomo, ver como corria a tarefa. E todos, com medo de o desiludir ou de alguma maneira o desenganar, contavam maravilha do trabalho dos burlões. E o próprio rei quando lhe mostraram o trabalho feito, admirou-se do que não via. E vestiu-se de nada e o povo de nada o aplaudiu. Até que um rapaz, de poucas artes e menos educação, gritou dentre a multidão: “O rei vai nu!”. Pois D. Sebastião, é como o dito rei, vestido de tela invisível; adornado de coisa nenhuma, aparecido sem nada se ver.O que se verifica na dinastia de Avis, é esse assomo de pedantaria, traço mais burguês do que fidalgo e que vem de longe, com o espírito negociante de D. João II. “Tem os impérios seus altos e baixos; crescem com o valor no seu auge, conservam-se numa mediania que basta para não decaírem, ainda que mais monarquias perecessem por falta de valor do que por excesso.” Este pensamento de Gracián podia ser dedicado a todos os grandes do mundo. Aquilo de “oponho um rei a todos os passados; proponho um rei a todos os futuros”, parece convir a D. Sebastião. Só que ele não foi um rei do passado nem um rei do futuro. © Guerra &Paz editores, Agustina Bessa-Luís. Reprodução Interdita.
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