ABRUPTO

7.4.06


AGUSTINA BESSA-LUÍS
FAMA E SEGREDO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL



Aos catorze anos D. Sebastião era vaidoso como o pote da leiteira de Gil Vicente. Era inteligente, vivo, confuso, como toda a criança malcriada mas recebida com tolerância porque responde pela sobrevivência dum povo. É difícil, para quem não foi nascido e criado na integridade cavalheiresca da monarquia, avaliar desse acatamento solene perante a majestade dum soberano. D. Sebastião era o rei, reconhecido e sagrado. Há um sabor de traição num simples desacordo até de etiqueta. Um fidalgo morre sem acusar de injustiça o seu rei. Morre inocente mas não vence o escrúpulo de deixar nome de inimigo do rei.

Hoje, com o manual da psiquiatria muito conferenciado num século de debates entre o normal e o patológico, é mais fácil percorrer os caminhos da História e trazer à luz os seus personagens. D. Sebastião foi tratado como um enfezado capitão de delírios e de toscas ambições; ou então como o seu oposto, um rei em tudo distinto, arrebatado pelos ideais colhidos nas memórias doutros Césares. Não faltou quem o equiparasse aos grandes de Roma e lhe pusesse na mão o ceptro duma rainha destinada a ser garantia da civilização. Nem uma coisa nem outra. D. Sebastião foi vítima do que se chama uma situação vital mal suportada com origem possivelmente num facto que se interiorizou até ao delírio, por exemplo, o afastamento da mãe aos quatro meses de idade e que ele nunca mais viu. D. Joana era de feitio seco e mal encarado, isso nós sabemos. A sua ambição diminuía os sentimentos de família para dar prioridade aos interesses do Império. Isso é comum nos clãs que se tornam poderosos, ainda mais pela força tentaculosa do dinheiro e da religião.

Mas, sobretudo, a compleição genética de D. Sebastião é importante e vai além de todas as condições emocionais desde a infância até à puberdade. Ele é um maníaco destinado a uma ensombração de ideias que resultarão na perda do reino. A sua incapacidade de atenção faz dele um aluno que pode ter um período brilhante em que a linguagem é rápida e imaginativa, seguida de prolixidade na desorganização do pensamento com propósitos desordenados. A expansão do humor com a convicção de tudo conseguir, pode alternar com uma agressividade exasperada. Como a que D. Sebastião manifesta a sua avó D. Catarina, dando aso a que ela se sinta mal e perca os sentidos. Um sintoma advertido pelos médicos é o da regulação térmica. D. Sebastião é acometido de frio intenso, é preciso cobri-lo e aquecê-lo, o que dá origem a ditos irónicos, como o de tratarem o seu casamento com frieza.

Esta é uma obsessão da família carnal e política. A saúde do príncipe parece não dar cuidados de maior, com excepção das perdas nocturnas e uretrite crónica cuja causa pode muito bem ser mais secreta do que se aventura. O estado de frustração do rei é manifesto e Alcácer-Quibir regista o seu clima mais alto. A crise pode manifestar-se na criança de alguns meses separada de sua mãe durante um largo período. A sua avidez afectiva pode tomar um carácter agressivo em relação ao meio envolvente. Não é de afastar em D. Sebastião um conteúdo homossexual, o que constituiria uma perturbação profunda vinculada ao ideal do eu narcísico. O esforço que D. Sebastião faz para corresponder às expectativas do reino, esforço físico e moral que o leva a usar da caça e dos exercícios de campanha desmesuradamente, chega a ser comovente. É um jovem bem constituído mas cujo conflito interior está na base duma tristeza que iria ser-lhe fatal. Nada há que o possa salvar; e ao país, com ele.
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Eu sempre disse que os grandes mestres não são próprios para educar. Porque o seu exemplo acabrunha quem não tem ânimo ainda para entender a grandeza. D. Sebastião lia as proezas de Carlos V com tal despeito que se tomou da obsessão de lhe merecer o parentesco e o destino. A impressão que dá é a dum bom aluno de artes que não lhe competiam, como a da guerra. O facto é que se prepara para a batalha e procede na mesma batalha duma maneira desordenada; sobressai o tipo neurótico, e, apesar da extravagância do seu comportamento, apesar da sua técnica do imaginário e de fingimento, ele não deixa de se adaptar à realidade. O rei compreende que a morte está presente e que não lhe pode escapar. A famosa frase “morrer, mas devagar” que, a ser autêntica é uma das mais belas que se podem proferir num momento em que o delírio atinge o seu auge, o delírio da morte, pode pertencer ao plano do célebre conto do rei vai nu. Gracián conta a história com muita fantasia e redobrado malabarismo de palavras. Parece D. Sebastião aquele caso de tecedores de maravilhas que se propuseram bordar um pano com que ele um dia se cobrisse. Ao longo das jornadas do trabalho, que na verdade não era nenhum, o rei mandou o criado, o aio e o mordomo, ver como corria a tarefa. E todos, com medo de o desiludir ou de alguma maneira o desenganar, contavam maravilha do trabalho dos burlões. E o próprio rei quando lhe mostraram o trabalho feito, admirou-se do que não via. E vestiu-se de nada e o povo de nada o aplaudiu. Até que um rapaz, de poucas artes e menos educação, gritou dentre a multidão: “O rei vai nu!”. Pois D. Sebastião, é como o dito rei, vestido de tela invisível; adornado de coisa nenhuma, aparecido sem nada se ver.

Depois de tudo, entre muitas exéquias e rituais da cristandade, não havia grande fé em Portugal. O duque de Alba faz uma advertência sobre a jornada de Alcácer-Quibir e parece que tece no tear o tal pano invisível: “Como se pode persuadir o que já é, e deve ser visto, e como pode ser visto o que não foi, nem é visto, e muito menos por razão, e com razão entendido, e alcançado”. É uma resposta enigmática mas suficientemente clara para se perceber que ele não tem esperança, nem no rei, nem na batalha, nem nos favores do Céu. Para ele, D. Sebastião é inteligente para louco e não cuida em pôr o ânimo abaixo da razão, como o cristão à europeia deve fazer. Entretanto, D. Sebastião endivida-se, compra biscoito, pólvora e tudo o que possa dar-lhe garantia de vencer a guerra. Recruta um contingente fornecido pelo príncipe de Orange, composto por alemães, holandeses, e valões, e que trazem com eles as mulheres, os filhos e as amantes, o que causa espanto em Lisboa ao saber-se que eram calvinistas e luteranos. “Ponderei serem hereges tão bons cristãos, que ajudem à guerra contra os mouros, mais que os cristãos, a quem convinha mais o bom efeito desta guerra, que aos hereges”, escreve o rei a Cristóvão de Moura, um português da confiança de Filipe II e que foi o testamenteiro de D. Joana, a mãe de D. Sebastião. Filipe II não gostou da heresia do sobrinho, mas um reino vale bem uma falha de catecismo. Não deixava de dar boas palavras a D. Sebastião, mas não se distrai em dificultar a aventura feita a peso de ouro e com promessas impossíveis de cumprir. O rei está tão obstinado que trata sem respeito os velhos fidalgos e só se fia dos jovens da sua idade, os do seu bando. A vaidade, a sua mania de merecer todo o aplauso e todo o prémio do mérito que os aduladores lhe conferiam, faz com que ande arredio de Lisboa ou começa a ser menos estimado. Num torneio a pé, na Primavera de 1570, combateu com o alferes-mor D. Luís de Menezes; saltou-lhe a espada da mão mas foi-lhe dado o prémio pela graça com que levantou a espada do chão. As pessoas avisadas e prudentes, e com qualquer direito hereditário a resistir ao olho cobiçoso de Filipe II, estavam perplexas e varadas de desgosto. D. Duarte, filho do infante D. Duarte e presumível pretendente ao trono por morte de D. Sebastião, morreu com trinta e cinco anos, dizia-se que minado pelas ofensas que o rei lhe tinha infligido. D. Duarte fora um dos presumíveis maridos da infanta D. Maria mas, tendo ela recusado melhores partidos, não era de crer que aceitasse tal casamento. O ânimo que até ali mostrara, de entranhado orgulho, não fazia prever isso.

O que se verifica na dinastia de Avis, é esse assomo de pedantaria, traço mais burguês do que fidalgo e que vem de longe, com o espírito negociante de D. João II.

“Tem os impérios seus altos e baixos; crescem com o valor no seu auge, conservam-se numa mediania que basta para não decaírem, ainda que mais monarquias perecessem por falta de valor do que por excesso.” Este pensamento de Gracián podia ser dedicado a todos os grandes do mundo. Aquilo de “oponho um rei a todos os passados; proponho um rei a todos os futuros”, parece convir a D. Sebastião. Só que ele não foi um rei do passado nem um rei do futuro.

© Guerra &Paz editores, Agustina Bessa-Luís. Reprodução Interdita.

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