ABRUPTO

6.4.06


AGUSTINA BESSA-LUÍS
FAMA E SEGREDO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL



Não é do meu entendimento e obrigação adiantar alguma coisa à História de Portugal, já escrita e comentada por pessoas doutoradas para isso. No que me aparento com os cronistas é na tentação de romancear e meter diálogos fictícios onde só se ajustam secos relatos. A História faz-se com as vozes do povo e conveniências de cortesãos. Estes muitas vezes ignoram o que se passa fora das paredes do paço, tão entretidos andam a compor e descompor os factos para seu proveito e não para sua erudição.

Elevado ao trono de Portugal, mais pelos rogos da plebe do que por sua vontade, o Mestre de Avis (que tinha boa índole, e isto faz bons parceiros) desistiu de ir para Inglaterra onde tinha aliados, mais notoriamente João de Gaunt, duque de Lencastre, quarto filho de Eduardo III. Tendo feito um segundo casamento com Constança, filha de D. Pedro de Castela, cultivou a ilusão de ser rei de Espanha, e era tratado por Monseigneur d’Espagne. A língua oficial era o francês, ou seja, o anglo-normando que depois se fixou no idioma próprio consagrado pela escrita.

D. João I tinha trinta e seis anos e o lugar assegurado no reino. Iam ficando longe as suas indecisas cogitações dos vinte e cinco anos, quando o casamento com D. Leonor parecia ser solução para as incertezas da sucessão e da paz com os castelhanos. As pretensões do duque de Lencastre ao trono de Espanha contavam com as diligências diplomáticas de Portugal, o que era demorado. Os tratados comerciais entre os dois países firmavam-se desde o reinado de D. Fernando que, segundo os ingleses, não era muito persistente na sua aliança.

Em 1386 João de Gaunt decidiu-se a ir reclamar a coroa de Castela, com o seu exército e levando com ele a família em toda a pompa: Constança, a filha de D. Pedro o Cruel, assassinado pelo irmão Henrique, Filipa já com vinte e seis anos e prestável para ser moeda de troca num casamento vantajoso; Catarina, sua meia-irmã, as bastardas Blanche e Joana e Catarina Swinford, aia e amante “en titre”. Era uma comitiva imponente que alegrou a piedosa Santiago, fazendo ressoar os sinos compostelanos.

O rei D. João trocava presentes com o duque de Lencastre e a mulher; além de oferecer belas hacaneias e panos de rás. O tratado que se seguiu, depois de três meses de preliminares, era o de combaterem juntos o rei de Castela, pelo que D. João receberia D. Filipa como esposa. Os preparativos da guerra eram bem conduzidos pelos estrategas, o duque de Lencastre estava satisfeito com o que diziam do futuro genro (o melhor rei que Portugal tivera em cem anos), mas quanto ao compromisso de casamento não se adiantava nada.

É verdade que o Mestre esperava de Roma a dispensa das ordens religiosas que recebera, para assim poder casar. No entanto, não mostrava entusiasmo pela noiva, a tranquila e paciente Filipa.

Era uma rapariga alta, de olhos azuis e modos aristocráticos, decerto empenhada numa severidade que fosse em contradição com a corte pouco moral do seu pai. As humilhações que sofrera ao ter de suportar a amante do duque e depois a madrasta espanhola, deram como resultado um comportamento puritano e uma experiência de sensibilidade ofendida. Tinha já um passado de desilusões, prometida a vários príncipes estrangeiros mas cujo casamento com ela tinha sido gorado. Estava no limiar da desgraça da mulher da corte, que era a obscuridade pela falta de preço, de herança e de manipulações políticas. E, de súbito, aparecia-lhe aquele rei de bom feitio, tanto físico como moral, que a tirava do convento e do anonimato e que lhe daria filhos. Filipa devia gostar dos filhos antes de os ver gerados. É a única notícia que temos na História duma mulher cuja gravidez é desaconselhada pelos médicos que aconselham o aborto; e ela recusa-se, levando a termo a prenhez e nascendo D. Fernando, chamado o Santo, dessa escolha amorável. Como não havia de ser ele destinado ao sofrimento de cativo?

Foi D. Filipa uma mãe de grandiosas virtudes; uma dessas pérolas que não se encontram senão num raro momento de triunfo do coração sobre a bestialidade humana. E também D. João, se bem que não fosse apaixonado, foi decerto um marido amável. Sem dúvida que ele estava grato a Inglaterra, onde pensara refugiar-se depois que o duque de Cambridge influíra para o tirar da prisão. Os projectos da guerra com Espanha não eram aprovados pelo Parlamento e o duque de Lencastre, em 1382, era tão pouco respeitável que não pôde sequer conseguir um empréstimo reembolsável para pagar o seu corpo expedicionário. Os mercadores de Londres não acharam interesse em serem seus fiadores e o projecto do duque ficou suspenso. Numa época em que a lentidão das comunicações faz supor que tudo fosse conforme a esse vagar, surpreendem-nos as rápidas mudanças na História. D. Leonor dá à luz um filho que, ao que se propala, é sufocado nos braços da ama porque suposto adulterino. Mas não vinha essa criança trazer mais desacordos no já tão dilacerado corpo do país? D. Leonor, acusada de traição, é encerrada no mosteiro de Tordesilhas, donde saiu para ir viver em Valladolid, cidade principal e capital do reino. Atribuiu-se-lhe um derradeiro amante, Zoilo Iñiquez, e uma filha. A história deixa-a tranquila, decerto gozando uma fortuna quantiosa, e não tão pobre como se quer brindar o insucesso. O que acontecia num ano, nesse tempo, dava para encher uma biblioteca.

E, com a família, João Gaunt trouxe uma aura de prestígio e de festa que deu ao Porto o gosto de cerimonial com consequências populares. O arcebispo de Braga já tinha casado os noivos por procuração, em Compostela. Mas foi no Porto que se celebraram as núpcias religiosas. D. Filipa estava hospedada no paço episcopal e decerto esperava com curiosidade e esperança, que é uma forma de submissão, a chegada do Mestre de Avis, agora rei jurado de Portugal. D. João, sem pressa, apresentou-se num cavalo branco, como os noivos da lenda. Pegou-lhe na mão, beijou-a, e beijou as outras damas, e despediu-se, partindo para o teatro da guerra que se estendia por terra e mar. A vitória de Aljubarrota não favorecia a aliança do duque de Lencastre com D. João I. Os planos políticos eram substituídos por acordos matrimoniais. João de Gaunt cede das suas aspirações a rei de Espanha, em troca do casamento da filha Catarina com o príncipe herdeiro de Castela. João de Avis cai gravemente doente e receia-se pela sua morte. A campanha bélica da Inglaterra não trouxera senão desaires e prejuízos e, quando as negociações começaram, Portugal ficava de parte. Quando o duque de Lencastre desembarca na Gasconha, a aliança com Portugal estava ameaçada. Contudo, um novo elo foi forjado, o casamento de D. João com D. Filipa. Feitas as contas, ninguém ganhava, e quatro anos de guerras, de empréstimos, de ruína mal encoberta por festejos e exultação falsa, deixavam o caminho aberto para a paz. A paz, “mãe de todos os vícios, comadre de todas as corrupções”, como diziam os pregadores mais audaciosos, franciscanos, ao que julgo.

A corte de D. Filipa era na sua maioria inglesa. O chanceler era um padre inglês; o mordomo-mor era também inglês. As damas tinham a carnação leitosa que tanto contrastava com a beleza morena das portuguesas. Foi este tipo ibérico que herdou a única filha de D. Filipa, Isabel, a que foi mulher do duque de Borgonha e mãe de Carlos o Temerário. Pode-se dizer que com a sua glória começa aqui a índole depressiva dos Avis e tantos mistérios encobre na História que patrocinam e fazem brilhar. Aqueles a quem Camões chamou a Ínclita Geração, os filhos de D. Filipa de Lencastre e o rei D. João I, pode-se dizer que deram ao país o significado da civilização em curso. Com eles, a Idade Média ficava convertida a um mau sonho de atrocidades trazidas pelos ventos da guerra. Na verdade, eles são filhos da rainha e ela educou-os para outros deveres que não eram os da intriga, da vingança, do desejo de poder. Outras luzes vinham com D. Filipa. A corte tornou-se discreta, instruída, dedicada a objectivos grandiosos mas nem por isso aventureiros.

No entanto, nessa família culta e criada para altos valores, pairava uma sombra que nenhum cronista descobriu; que só talvez um preceptor arguto descreve no mais íntimo do seu pensamento. Era uma gente estranha.

Os homens, quatro rapazes, eram altos, apurados no vestir, leitores assíduos de obras extremadas da vulgaridade. A única filha, D. Isabel, era mais do tipo meridional. Baixa, ou mediana, de cor trigueira. A escritora Rose Macaulay, ainda que sem a cristalização nos códigos e vestígios históricos existentes nos arquivos, foi uma observadora fiável nas suas pesquisas. Não se demora em dar provas do que diz, mas nem por isso a consideramos ligeira nos seus estudos. Os ingleses têm um sentido de humor que alterna com o sentido prático. “Henrique, a julgar pelos seus retratos, podia ser um fidalgo inglês da província”, diz. Justamente Henrique não tem ar de provinciano, a julgar pelo retrato mais famoso que lhe é atribuído, o de Grão Vasco. Talvez seja ele, talvez não. O que nós vemos é um homem coberto com um grande chapéu donde pende um véu e que o distingue dos outros personagens. Foi uma escolha dele próprio, pois era bastante preocupado no vestir. Trata-se dum chapéu de corte. Quanto a ser loiro e alto, isso não eram apenas características inglesas. Pedro I de Castela era alto e loiro, enérgico e com vocação marinheira. Mesmo ajoelhado, na estátua que está no Museu Arqueológico Nacional de Madrid, vê-se que tem um porte majestoso e que era formoso. Pedro I era primo de D. Pedro, o da Dona Inês de Castro e teve uma história amorosa quase tão acidentada como o seu parente português. Foi ele quem primeiro em Espanha deu um sentido marítimo ao seu reinado. Alto, loiro e marinheiro podiam ser atributos peninsulares.

No entanto, parece haver na Ínclita Geração um elemento furtivo que lhes determina a vocação e um certo movimento interior para o êxtase.

© Guerra &Paz editores, Agustina Bessa-Luís. Reprodução Interdita.

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