ABRUPTO

2.3.06


O "HOMEM SECRETO" QUE TINHA UMA "GARGANTA FUNDA"

cover.woodward.jpgUma das grandes histórias do jornalismo do século XX é a da sucessão de notícias que dois jornalistas do Washington Post, Bob Woodward e Carl Bernstein, fizeram sobre o caso Watergate e que levou à demissão do Presidente Nixon. Essa cobertura jornalística de investigação, que chegou a ter tratamento hollywoodesco num filme de sucesso, assentava numa personagem-chave conhecida como "Garganta Funda". A "Garganta Funda", que passava informações a Bob Woodward, tornou-se a mais conhecida das fontes do jornalismo contemporâneo, por um lado pela relevância do caso e, por outro, por ter sido um segredo durante mais de trinta anos, que suscitou muita discussão e inspirou toda uma literatura especulativa, "revelando" nomes e propondo teorias que vieram a revelar-se quase todas falsas. Prefigurada na "Garganta Funda" está a relação ambígua e complexa do jornalismo com as suas fontes, que desde os anos setenta assumiu uma centralidade, mesmo uma "dignidade", que não tivera até então.

A história encerrou-se como notícia em 2005 quando se soube, trinta e três anos depois, quem era a "Garganta Funda". O livro de Bob Woodward The Secret Man, de que está anunciada uma tradução para português, faz um balanço das relações atribuladas do jornalista com a fonte que lhe deu prestígio e glória, e é um interessante relato para compreender a muito especial relação que está no centro de muito jornalismo político.

O "Garganta Funda" era Mark Felt, à data o número dois do FBI, e era difícil encontrar no contexto da época quem estivesse melhor colocado para saber o que se estava a passar na investigação sobre o grupo que fora apanhado a espiar o comité de campanha dos Democratas por conta da Casa Branca de Nixon. Tudo indica que os motivos de Felt para as suas inconfidências jornalísticas eram tudo menos nobres: descontentamento com a sua carreira no FBI, conflitos com o chefe que foi colocado no lugar que entendia ser seu por direito próprio e dificuldade de adaptação à evolução do FBI. Felt é uma personagem antipática, que começa por manter uma relação com Woodward típica de um espião clandestino seguindo as famosas "regras de Moscovo" dos livros de Le Carré, incluindo os célebres encontros nocturnos numa garagem deserta. Woodward, que não percebe nem vê necessidade em tais cuidados, comporta-se como um amador, notando com razão que se sentia como mais um agente de Felt. Este acabou enredado num processo típico do pós-Vietname e do pós-Watergate, que ia levando o alto quadro do FBI à prisão. Felt foi acusado e condenado por ter feito buscas ilegais a cidadãos americanos, no âmbito da investigação do grupo terrorista conhecido como os Weatherman, e só foi salvo in extremis pela evolução política conservadora na Presidência, sendo perdoado por Reagan.

O livro revela vários pormenores interessantes para corrigir alguns mitos correntes. Primeiro, como já se tinha percebido nas análises ao conteúdo das notícias, "Garganta Funda" poucas informações primárias forneceu, apenas indicou pistas para a investigação. Woodward quebrou várias regras tradicionais do jornalismo indo mais longe do que aquilo que sabia de forma fundamentada ou que lhe tinha sido sugerido. É verdade que as indicações de Felt, algumas erradas, acabavam por ser elas próprias informações relevantes dada a credibilidade da sua origem, mas Woodward e Bernstein foram "criativos" com aquilo que sabiam e que não sabiam.
Segundo, mais gente do que se pensava conhecia a identidade da fonte, a começar pelo próprio Nixon e os seus co-conspiradores no caso Watergate, que tinham a certeza de que era Felt que passava informações, e que inclusive tinham eles próprios uma "Garganta Funda" no Washington Post. As gravações secretas que vieram a ser conhecidas das conversas na Casa Branca são conclusivas quanto à identificação de Felt e à impotência que Nixon e os seus sentiam. Eles achavam que fazer qualquer coisa contra Felt poderia provocar uma avalanche de revelações ainda mais perigosa, embora as fugas pudessem ser um crime em si mesmas. Por outro lado, vários artigos, durante os mais de 30 anos de segredo, tinham indicado Felt como sendo o "Garganta Funda", alguns baseados em inconfidências do pequeno núcleo de pessoas que tinham tido acesso à informação genuína (um deles um filho de Bernstein). O próprio Felt jogava um jogo perigoso, sugerindo e negando o seu papel nas fugas. A identidade da "Garganta Funda" só não foi conhecida mais cedo porque a dupla negação de Woodward e Felt fazia hesitar os autores de teorias sobre a identidade do informador do jornal, que quando publicavam se ficavam por generalidades, mesmo quando estavam perto da verdade.

A revelação da identidade da "Garganta Funda" também não é uma história desprovida de ambiguidades. Tudo indica que a uma dada altura Woodward queria encontrar um pretexto para que Felt o autorizasse a revelar quem era "Garganta Funda", mas as suas relações com ele tinham azedado pela cobertura hostil que o Washington Post fizera ao processo das buscas ilegais no caso dos terroristas dos Weatherman. Quando se encontraram de novo, Felt, nos seus oitenta e muitos anos, tinha demência senil e mostrava-se incapaz de dar o seu consentimento para acabar com o segredo. O relato das conversas entre ambos mostra que Felt não tinha verdadeira consciência do que se passava e Woodward hesitou sobre se o facto "de este ser outro homem" justificava a quebra do acordo de manter a sua identidade escondida até à morte.

É notório que apesar de o jornalista querer revelar a sua fonte, acabou por ser ultrapassado pela Vanity Fair, que obteve uma confirmação da família e do advogado da família. Este livro é o resultado de uma corrida contra o tempo para Woodward "agarrar" de novo uma "história" de que tinha acabado por perder o controlo final. A revelação do nome da "Garganta Funda" acabou por ser feita sem o consentimento explícito de Felt, incapacitado de o dar com plena consciência, e com Woodward e Bernstein como personagens secundárias enquanto jornalistas da sua própria história.

Mao Zedong dizia num texto que, numa guerra civil, pouco importava saber os motivos por que um homem estava numa barricada desde que disparasse para o lado certo. Podia ser por amores não correspondidos, por ser suicida, por ser louco ou por ser um revolucionário dedicado, pouco importava. A ideia com que vamos ficar da "Garganta Funda" é parecida com a deste pragmatismo brutal de Mao: ele disparou para o lado certo e ajudou a acabar com uma presidência que não hesitava em cometer as mais flagrantes ilegalidades para sobreviver, não sendo os seus motivos relevantes para avaliar o resultado. Mas nós sabemos que, na relação ambígua entre fontes e jornalistas, os motivos são mesmo importantes e mantêm-se intactos na utilização dada pelo jornalista - ou seja, falar aos jornalistas compensa para quem fala. E, sobre todo este processo, sabemos outra coisa que nos mostra a ironia da história: a presidência Nixon é hoje considerada uma das melhores da história americana recente...

( No Público de hoje)

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© José Pacheco Pereira
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