ABRUPTO

29.3.06


GRIPE, LIVROS, TELEVISÃO E O CANAL DA FOX

Não há nada como a aparição sazonal do vírus da gripe, felizmente de uma forma ainda tradicional e domável, longe da ameaça cada vez mais perto da Grande Gripe das Aves, para remeter a vida de cada um a um infantil conforto da doença, que deve vir dos dias em que não se ia à escola, se ficava na cama, quente e confortável, servido por todos, centro de muito especiais atracões. A gripe já não é o que era, e quase só o frasco azul-escuro e esverdeado do Vicks VapoRub faz essa ponte longínqua com a infância, com o seu cheiro agradável às coisas que não mudam, mas mudam. O frasco era de vidro e agora é de plástico.

Mas as minhas gripes são sempre grandes momentos de leitura e televisão, o que une o agradável ao agradável, e me afasta do mundo obcecado das notícias dos jornais e da agenda política em grande parte artificial. Ao longe vê-se passar a posse presidencial, uma mesinha de chá disfarçada de mesa de trabalho, a agitação de um Congresso, os tumultos franceses e, verdadeiramente numa manifestação de egoísmo, o que nos interessa é a pilha de livros a dizerem-me “lê-me”, e o pequeno ecrã que não precisa sequer de dizer “vê-me”. Eu vejo, eu vejo.

O que eu vi reconciliou-me com a televisão, o que é um lugar comum porque nunca estive zangado com um meio que particularmente estimo. Digo de outra maneira reconciliou-me com as séries televisivas, o que já é mais exacto, para um órfão dos Sopranos, que, depois da última série, deixou de encontrar alguma coisa que me prendesse tão regularmente ao ecrã maligno. Até agora e num canal a que nunca tinha dado muita atenção e que aceitei ter (é pago à parte), porque uma menina me telefonou a perguntar se queria um pacote qualquer com o nome de “familiar” e eu, torcendo o nariz ao nome do pacote que me parecia uma promessa de aborrecimento, aceitei porque a mera ideia de não ter os canais todos me fere a sensibilidade. E vieram os canais da Fox e com um deles, mais uma série de episódios magníficos.


No canal da Fox passam várias séries que já conhecia e que nunca me suscitaram grande interesse como é o caso dos “Ficheiros Secretos”, que tinha tudo para ser uma série que me agradasse, gosto de ficção cientifica e de horror, mas aqueles agentes do FBI são tão rígidos e self-righteous que nem os monstros e os mistérios ocasionais os conseguem levantar de um torpor absoluto. Depois havia umas coisas ligeiras, visíveis mas não entusiasmantes, passadas num Casino em Las Vegas, onde o mundo higiénico da América se manifesta numas damas de peito farto e nuns cavalheiros atléticos da segurança, sem grande imaginação e nenhuma verdadeira personagem. A personagem é o Casino, mas só mesmo lá estando é que se sente a coisa. O mesmo, em mais pesado, acontecia numa ilha do Pacífico onde uns “perdidos” de um acidente de avião bizarro aterram em cima duma ilha misteriosa onde ninguém faz o que o bom senso exige e todos parecem ser híbridos entre as terríveis crianças do Senhor das Moscas e a Ilha Misteriosa de Júlio Verne. Depois há umas “Donas de Casa Desesperadas” que nunca percebi a fama que tinham porque é aborrecido e estereotipado, embora nos devolva um mundo que não temos na Europa que é o da “vizinhança”. Compreendo que na América deve ser um sucesso entre as ditas donas de casa, que devem sonhar com maldades miméticas, mas aquelas vidas liofilizadas são tão artificiais como o Casino de Las Vegas e a ilha dos “perdidos”. Depois há os Simpsons que são excelentes. Ponto. E duas magníficas surpresas, que animaram os meus dias: “House” e “Deadwood”.


“Deadwood”, da produtora dos Sopranos HBO, é uma história do Oeste americano, da fronteira violenta e turbulenta. É uma série, como os Sopranos, que só passa na América no cabo, com a sua linguagem obscena, as cenas de bordel sem idealização, a brutalidade sempre à flor da pele de todas as personagens quer reais, quer ficcionais. É que existe uma Deadwood real no Dakota do Sul, e de facto por lá passaram várias das personagens da série televisiva, como Calamity Jane e Wild Bill Hickok, o dono do bordel, os donos de lojas, etc. No cemitério de Deadwood estão muitas das personagens reais da série, havendo outras ficcionais para dar consistência narrativa e dramática à história. No seu conjunto, todas as qualidades de encenação da televisão americana, a sua construção de personagens, o trabalho do guião, a precisão dos cenários, uma iluminação excelente para dar o efeito da escuridão das ruas e das casas apenas iluminadas por candeeiros, tudo se combina para uma excelente série televisiva. A série é tudo menos “familiar”, mas vale por si só o canal da Fox onde passa.


Depois há um bónus suplementar, a série da Fox “House” centrada numa situação clássica de muita televisão americana, o hospital. Mais do que em “Deadwood”, que é um retrato de grupo, o retrato de uma cidade, “House” é dependente de uma personagem, o médico Gregory House representado pelo actor inglês Hugh Laurie. House é uma personagem ideal de televisão, excessiva, enchendo o ecrã com a sua mera aparição, um génio do diagnóstico diferencial (que cita o Jornal do Instituto de Medicina e Higiene Tropical em português para um caso raríssimo de transmissão sexual de “doença do sono”), absolutamente insuportável de feitio, agressivo, cínico e solitário. House sofre dores violentas devido a uma doença numa perna, que arrasta com a sua bengala pelo ecrã coxeando e tomando Vicodin às mãos cheias. O New York Times, referindo-se a esta série, escreveu: “Tão aditiva como Vicodin…”

O hospital onde House trabalha é completamente artificial, demasiado perfeito para ser verdadeiro. Nada está sujo, todos os mais complexos meios de diagnóstico existem, não faltam quartos, nem pessoal, nem remédios, por sofisticados e raros que eles sejam. Se não houvesse Gregory House, a demonstração da imperfeição genial, a série seria anódina. Mas, diferentemente das séries de hospital e de médicos, “House” passa quase sempre por cima do aspecto melodramático da doença, para se centrar no exercício intelectual de descobrir a causa, e sobre esse ponto de vista o grau de complexidade dos diagnósticos, e a sua metodologia diferencial são uma parte fundamental da estrutura narrativa. À narração acrescenta-se a dança subjectiva da sua equipa de colaboradores, que trata abaixo de cão, e dos administradores do hospital, afectados pela violência verbal de House e as suas atitudes não convencionais. A única personagem que trata House de igual para igual é o seu colega oncologista Wilson, e os diálogos entre os dois são um dos bons retratos ficcionais da amizade de qualquer série televisiva.

“House” e “Deadwood” reconciliaram-me com o mundo das séries televisivas, que a televisão portuguesa agora afasta cuidadosamente do horário nobre, onde não entra nada que não seja em português. Há mais mundo para além do infantilismo dos concursos, telenovelas e reality shows. Num canal perto de si. Pago, mas como não há almoços grátis, não me queixo. O almoço é bom, mesmo com gripe.

(No Público.)

*

Acabei de ler o seu post em que falava da série House.

Já a vi, varias vezes e devo informar que esta replete de vários erros técnicos que muito me fazem sofrer porque de facto tem os ingredientes para ser uma boa série sobre medicina.

Não me vou por aqui a explicar todas as falhas técnicas que eu próprio ja detectei, outros, tecnicamente mais qualificados que eu (sou veterinário) poderão explicar mais mas deixo os seguintes aperitivos:

Paciente com hematocrito baixo, o passo seguinte e descobrir se e uma anemia regenerativa ou nao-regenerativa (teria poupados uns bons 15 ou 30 minutos de episodio e muitos outros testes caríssimos ja que andavam a procura de condições típicas de anemia regenerativa e de anemia nao-regenerativa).

Paciente more devido a complicações com uma úlcera gástrica perfurante não diagnosticada (o episodio em que o House e um dos seus assistentes são levados a um conselho disciplinar) referem repetidas vezes que o problema resultou de nao terem perguntado ao paciente se havia notado sangue nas fezes. Uma ulcera gástrica sangrante NAO provoca sangue nas fezes porque este e digerido ao longo do intestino, em vez disso o que se encontram são “borras de café” nas fezes, sangue nas fezes seria indicação de hemorragia na porção distal do intestino grosso (hemorróidas por exemplo).

(Rui M. C. Couchinho)

*

Também eu me reconciliei com a televisão à custa de House. E, confesso, estou viciado.

Talvez por isso esteja tentado a justificar o injustificável: o hospital é limpinho, hi-tec, dotado de todos os meios de diagnóstico e de tratamento, porque procura retratar o Hospital Universitário de Princeton… É lá que se desenrola a acção. Só assim se explica que a equipa de House seja constituída por pequenos génios…

(Rui Coutinho)

*

Duas precisões, secundárias, em relação à sua crónica gripal de hoje no «Público»:

1- A HBO não é uma produtora, é um canal de cabo «non-syndicated» na terminologia norte-americana, que encomenda algumas produções em exclusivo a diversos produtores. Por exemplo foram eles que encomendaram o «Rome», que comprei para a 2: em tempos e que lá está a passar agora;

2- O «House» foi comprado para Portugal pela TVI.

Nota final: o Fox está a crescer no cabo, apesar de ser um canal pago em pacote à parte - isto no abuso de posição dominante, porque na Cabovisão vem no pacote geral.

(Manuel Falcão)

*

Queria referir que para além do hospital perfeito, dos complexos meios de diagnóstico facilmente disponíveis, a presença dos diferentes actores, dos intrigantes casos clínicos a que como detectives sherlockianos procuram a sua origem, o que mais me fascina na série Dr. House são os seus diálogos desconcertantes, irónicos, satíricos, agressivos, ofensivos ou mesmo ingénuos que nos desarmam completamente.

Mando-lhe aqui umas amostras para se entreter enquanto está doente.

Dr. Gregory House: You bastard. You invited my parents to dinner.
Dr. Wilson: Geez, Cameron's got a big mouth.
Dr. Gregory House: Ha! Not as big as yours.
Dr. Wilson: Hey, you used me to avoid seeing your parents.
Dr. Wilson: Well, what do you care?
Dr. Gregory House: I don't. I just thought it might be interesting to find out why.
Dr. Gregory House: You could have just asked.
Dr. Wilson: You would have lied.
Dr. Gregory House: And you would have believed me. Which would have kept us both happy. Do you want your money back, is that what this is about?
Dr. Wilson: No! Wait, what? Have you got the money?
[House starts to write check]
Dr. Wilson: If you have the money, then why did you need the loan?
Dr. Gregory House: I didn't. I just wanted to see if you'd give it to me. I've been borrowing increasing amounts ever since you lent me forty dollars a year ago. A little experiment to see where you'd draw the line.
Dr. Wilson: You're - you're trying to objectively measure how much I value our friendship?
Dr. Gregory House: That's five grand, you've got nothing to be ashamed of. So what do you say, one little phone call, one big check?
Dr. Wilson: Fine.
[takes check]
Dr. Wilson: Thanks.
[gets in car]
Dr. Wilson: Now, be a grownup and either tell mommy and daddy you don't want to see them or I'm picking you up at 7:00 for dinner.
Dr. Gregory House: What do you mean? You just said -
Dr. Wilson: I lied. I've been lying to you in increasing amounts ever since I told you you look good unshaved a year ago. It's a little experiment, you know, to see where you'd draw the line.


John House: Last I checked, you still had two legs.
Dr. Gregory House: [holds up cane] Actually, three.
John House: You know what your problem is, Greg?
Dr. Gregory House: Shifting gears?


Dr. Wilson: [about Cameron] So she's really coming back?
Aubrey Shifren: Who's coming back?
Dr. Gregory House: You don't know her.
Dr. Wilson: You give her a raise? Increase her benefits?
Dr. Gregory House: Don't have TiVo on this thing, can't rewind. Shut up.
Aubrey Shifren: You lower her hours?
Dr. Gregory House: You don't even know her!
Dr. Wilson: Who is this guy?
Dr. Gregory House: He's a patient.
Aubrey Shifren: He's examining me.
Dr. Gregory House: He's got to go back to work as soon as I'm done with the examination. Guess I do too.
Dr. Wilson: It's got to be something. I mean, she didn't come back because she likes you.
[House gets a strange look on his face]
Dr. Wilson: Wait a minute! She did come back because she likes you!
Aubrey Shifren: Heh heh! You dog! You slept with her! Dr. Gregory House: Keep talking. I'll finish your exam with a prostate check.
[to Wilson]
Dr. Gregory House: I've agreed to take her on one date.
Dr. Wilson: What?
Aubrey Shifren: So, you into this girl?
Dr. Wilson: Yes.
Dr. Gregory House: No! She's not giving me any choice.
Aubrey Shifren: Wait... she's making you do her?
Dr. Gregory House: Date her.
Dr. Wilson: Young ingenue doctor falling in love with gruff, older mentor; her sweet gentle nature bring him to a closer, fuller understanding of his wounded heart.
Aubrey Shifren: [puts his arm around House's shoulders] Do her, or you're gay.
Dr. Gregory House: For God's sake.
[grabs TV and as he's walking out the door]
Dr. Wilson, Aubrey Shifren: - sitting in a tree, K-I-S-S-I-N-G
Dr. Gregory House: Grow up. And learn to harmonize.

Se tiver tempo pode divertir-se um pouco mais por aqui.

(Miguel Gomes)


(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]