ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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29.3.06
GRIPE, LIVROS, TELEVISÃO E O CANAL DA FOX Não há nada como a aparição sazonal do vírus da gripe, felizmente de uma forma ainda tradicional e domável, longe da ameaça cada vez mais perto da Grande Gripe das Aves, para remeter a vida de cada um a um infantil conforto da doença, que deve vir dos dias em que não se ia à escola, se ficava na cama, quente e confortável, servido por todos, centro de muito especiais atracões. A gripe já não é o que era, e quase só o frasco azul-escuro e esverdeado do Vicks VapoRub faz essa ponte longínqua com a infância, com o seu cheiro agradável às coisas que não mudam, mas mudam. O frasco era de vidro e agora é de plástico. Mas as minhas gripes são sempre grandes momentos de leitura e televisão, o que une o agradável ao agradável, e me afasta do mundo obcecado das notícias dos jornais e da agenda política em grande parte artificial. Ao longe vê-se passar a posse presidencial, uma mesinha de chá disfarçada de mesa de trabalho, a agitação de um Congresso, os tumultos franceses e, verdadeiramente numa manifestação de egoísmo, o que nos interessa é a pilha de livros a dizerem-me “lê-me”, e o pequeno ecrã que não precisa sequer de dizer “vê-me”. Eu vejo, eu vejo. O que eu vi reconciliou-me com a televisão, o que é um lugar comum porque nunca estive zangado com um meio que particularmente estimo. Digo de outra maneira reconciliou-me com as séries televisivas, o que já é mais exacto, para um órfão dos Sopranos, que, depois da última série, deixou de encontrar alguma coisa que me prendesse tão regularmente ao ecrã maligno. Até agora e num canal a que nunca tinha dado muita atenção e que aceitei ter (é pago à parte), porque uma menina me telefonou a perguntar se queria um pacote qualquer com o nome de “familiar” e eu, torcendo o nariz ao nome do pacote que me parecia uma promessa de aborrecimento, aceitei porque a mera ideia de não ter os canais todos me fere a sensibilidade. E vieram os canais da Fox e com um deles, mais uma série de episódios magníficos. No canal da Fox passam várias séries que já conhecia e que nunca me suscitaram grande interesse como é o caso dos “Ficheiros Secretos”, que tinha tudo para ser uma série que me agradasse, gosto de ficção cientifica e de horror, mas aqueles agentes do FBI são tão rígidos e self-righteous que nem os monstros e os mistérios ocasionais os conseguem levantar de um torpor absoluto. Depois havia umas coisas ligeiras, visíveis mas não entusiasmantes, passadas num Casino em Las Vegas, onde o mundo higiénico da América se manifesta numas damas de peito farto e nuns cavalheiros atléticos da segurança, sem grande imaginação e nenhuma verdadeira personagem. A personagem é o Casino, mas só mesmo lá estando é que se sente a coisa. O mesmo, em mais pesado, acontecia numa ilha do Pacífico onde uns “perdidos” de um acidente de avião bizarro aterram em cima duma ilha misteriosa onde ninguém faz o que o bom senso exige e todos parecem ser híbridos entre as terríveis crianças do Senhor das Moscas e a Ilha Misteriosa de Júlio Verne. Depois há umas “Donas de Casa Desesperadas” que nunca percebi a fama que tinham porque é aborrecido e estereotipado, embora nos devolva um mundo que não temos na Europa que é o da “vizinhança”. Compreendo que na América deve ser um sucesso entre as ditas donas de casa, que devem sonhar com maldades miméticas, mas aquelas vidas liofilizadas são tão artificiais como o Casino de Las Vegas e a ilha dos “perdidos”. Depois há os Simpsons que são excelentes. Ponto. E duas magníficas surpresas, que animaram os meus dias: “House” e “Deadwood”. “Deadwood”, da produtora dos Sopranos HBO, é uma história do Oeste americano, da fronteira violenta e turbulenta. É uma série, como os Sopranos, que só passa na América no cabo, com a sua linguagem obscena, as cenas de bordel sem idealização, a brutalidade sempre à flor da pele de todas as personagens quer reais, quer ficcionais. É que existe uma Deadwood real no Dakota do Sul, e de facto por lá passaram várias das personagens da série televisiva, como Calamity Jane e Wild Bill Hickok, o dono do bordel, os donos de lojas, etc. No cemitério de Deadwood estão muitas das personagens reais da série, havendo outras ficcionais para dar consistência narrativa e dramática à história. No seu conjunto, todas as qualidades de encenação da televisão americana, a sua construção de personagens, o trabalho do guião, a precisão dos cenários, uma iluminação excelente para dar o efeito da escuridão das ruas e das casas apenas iluminadas por candeeiros, tudo se combina para uma excelente série televisiva. A série é tudo menos “familiar”, mas vale por si só o canal da Fox onde passa. Depois há um bónus suplementar, a série da Fox “House” centrada numa situação clássica de muita televisão americana, o hospital. Mais do que em “Deadwood”, que é um retrato de grupo, o retrato de uma cidade, “House” é dependente de uma personagem, o médico Gregory House representado pelo actor inglês Hugh Laurie. House é uma personagem ideal de televisão, excessiva, enchendo o ecrã com a sua mera aparição, um génio do diagnóstico diferencial (que cita o Jornal do Instituto de Medicina e Higiene Tropical em português para um caso raríssimo de transmissão sexual de “doença do sono”), absolutamente insuportável de feitio, agressivo, cínico e solitário. House sofre dores violentas devido a uma doença numa perna, que arrasta com a sua bengala pelo ecrã coxeando e tomando Vicodin às mãos cheias. O New York Times, referindo-se a esta série, escreveu: “Tão aditiva como Vicodin…” O hospital onde House trabalha é completamente artificial, demasiado perfeito para ser verdadeiro. Nada está sujo, todos os mais complexos meios de diagnóstico existem, não faltam quartos, nem pessoal, nem remédios, por sofisticados e raros que eles sejam. Se não houvesse Gregory House, a demonstração da imperfeição genial, a série seria anódina. Mas, diferentemente das séries de hospital e de médicos, “House” passa quase sempre por cima do aspecto melodramático da doença, para se centrar no exercício intelectual de descobrir a causa, e sobre esse ponto de vista o grau de complexidade dos diagnósticos, e a sua metodologia diferencial são uma parte fundamental da estrutura narrativa. À narração acrescenta-se a dança subjectiva da sua equipa de colaboradores, que trata abaixo de cão, e dos administradores do hospital, afectados pela violência verbal de House e as suas atitudes não convencionais. A única personagem que trata House de igual para igual é o seu colega oncologista Wilson, e os diálogos entre os dois são um dos bons retratos ficcionais da amizade de qualquer série televisiva. “House” e “Deadwood” reconciliaram-me com o mundo das séries televisivas, que a televisão portuguesa agora afasta cuidadosamente do horário nobre, onde não entra nada que não seja em português. Há mais mundo para além do infantilismo dos concursos, telenovelas e reality shows. Num canal perto de si. Pago, mas como não há almoços grátis, não me queixo. O almoço é bom, mesmo com gripe. (No Público.) * Acabei de ler o seu post em que falava da série House. (url)
© José Pacheco Pereira
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