ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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30.3.06
A CRISE DA IMPRENSA ESCRITA URBI ET ORBI Os últimos indicadores publicados em Portugal revelam uma crise da imprensa escrita, como de costume com excepções, mas mostrando uma tendência que não é distinta do que acontece a nível mundial. Mesmo nos países em que há elevados índices de leitura de jornais, existe uma usura crescente das suas tiragens, em particular da chamada imprensa de referência. A classificação de "imprensa de referência" é parcialmente ilusória, porque a tendência para a tabloidização não é inteiramente contraditória com a "referência", e também nos tablóides há trabalho jornalístico. O mesmo separar de águas pode também ser enganador com a imprensa gratuita. O que digo genericamente é para a imprensa escrita, jornais e revistas no seu conjunto que, globalmente, mostram sinais da mesma doença.Conhecidos mais números para ilustrar esta tendência em Portugal, imediatamente a discussão virou-se para as receitas, para o que se pode fazer para que se leiam mais jornais e revistas. Falou-se das dificuldades, de literacias, das mudanças que são necessárias nos órgãos de comunicação social, da necessidade de inovação editorial, etc., mas esta discussão parece-me ser ao lado, porque penso que este tipo de crise da imprensa escrita veio para ficar. O que acontece é que a imprensa escrita continua a oferecer um produto único e imprescindível, no conjunto das suas diferentes variações, mas cuja centralidade é hoje bastante menor em relação ao todo do sistema comunicacional. Há coisas que a imprensa escrita faz melhor do que ninguém - em particular a mediação editorial das notícias e a produção de opinião, quer no âmbito exclusivamente jornalístico, quer no do comentário de diferente teor -, mas já há muitas outras coisas que faz menos bem, e não vai voltar a fazê-lo. Também aqui se repete a história do cinema e da lanterna mágica - depois do cinema não se volta aos tempos da lanterna mágica. A reacção de muitos responsáveis pela imprensa, de jornalistas a proprietários, é repensar muitos aspectos da forma como a imprensa escrita se apresenta e o tipo de cobertura jornalística que faz. As inovações gráficas, a qualificação do tratamento noticioso, em detrimento da notícia pura e dura, e as tendências para vários tipos de jornalismo, em particular os tablóides, ou o especializado, são algumas dessas respostas. Olhando para o Diário de Notícias e o Público, muitas dessas tentativas de resposta estão à vista: suplemento económico do Diário de Notícias, revistas temáticas no Público, maior papel na primeira página de temas como futebol, aproximação dos temas "sérios" aos tablóides, utilização de cor, diminuição do tamanho dos artigos, ofertas de discos, livros e filmes, etc. Mas penso que o problema é mais profundo e, qualquer que seja a volta que se lhe dê, o papel da imprensa escrita, continuando a ser único e imprescindível no sistema comunicacional, é hoje menor e apresenta um maior grau de complementaridade com outras formas de media, que ocupam efectivamente uma parte do espaço que pertencia no passado em exclusivo aos jornais e revistas. Ao mesmo tempo, num processo que caminha num sentido idêntico, a palavra escrita perde terreno, da escola à publicidade, da vida social à oralidade, substituída cada vez mais por meios mais intensos e afectivos assentes na imagem e na imagem em movimento. Numa sociedade em que o logos perde terreno, o pathos desenvolve-se exponencialmente na cultura de massas. As televisões "educam" mais do que a escola, ou a família, e educam na imagem e na rapidez, em detrimento do argumento e da racionalidade. Não admira que na economia da vida a palavra escrita perca valor simbólico para as massas que acederam ao conforto, explicitude e comodidade das imagens. Eu sou um grande consumidor de comunicação social, mais excessivo do que muitos, mas o que representa a minha experiência, encontro-o cada vez mais em muitas pessoas da elite social que sempre consumiu preferencialmente a imprensa escrita. Hoje, continuando a ler praticamente todos os jornais principais e revistas, uma parte importante da informação que encontrava nos jornais migrou para outros meios como a televisão e a Internet. Posso queixar-me da superficialidade dos noticiários audiovisuais, mas quer a rádio, em certos casos, quer a televisão fornecem-me as breaking news de forma insuperável. Pode-se argumentar que os jornais o fazem com perspectiva, e com distanciação, mas este é um argumento já defensivo, porque a informação em tempo próximo do real, com todos os defeitos na sua editorialização, não deixa de ter vantagens. A dificuldade editorial dos "directos" não significa impossibilidade editorial, porque uma boa estação de rádio ou televisão com equipas de repórteres e jornalistas experimentados pode perfeitamente fazê-lo, sem pôr em causa a fluidez da notícia. Ora, no passado, os jornais também cumpriam esta função, por exemplo, produzindo edições especiais, imediatamente distribuídas na rua, o que hoje só muito raramente acontece. Como estamos melhor informados sobre eventos, em particular os que têm maior espectacularidade, e por isso "valor" televisivo, os jornais não podem competir nesse aspecto noticioso. A CNN, com transmissões como a que fez do golpe contra Gorbatchov, nos últimos dias da URSS, forneceu um paradigma da cobertura em directo, que é um aperfeiçoamento, ou, se se quiser, um prolongamento de uma função que pertencia aos jornais, migrou para a rádio e para a televisão e, ainda no seu início, para a Internet. Como existem hoje, os quotidianos são lentos para o fluxo noticioso, embora tenham tecnologias a prazo que lhes irão permitir ser mais velozes. De algum modo, as sinergias entre os jornais em papel e os sítios noticiosos que os jornais mantêm na Internet, e mesmo, nalguns casos, blogues de jornalistas que se encontram in situ, novas formas de distribuição mais rápida dos jornais, inclusive por meio de "papel" electrónico, podem acelerar, mas não podem competir em absoluto. Depois há todo um aspecto de cobertura entre o especializado e o generalista, de assuntos e temas particulares, em que também a competição entre os jornais e a Internet, sítios e blogues monotemáticos, se faz em prejuízo dos jornais. A crítica especializada, de culinária, de gadgets, de vinhos, de viagens, espectáculos, de livros, de filmes, ainda continua a ser um domínio em que a imprensa escrita, que tenha críticos com independência e qualidade, conhecimento das matérias e estilo próprio de escrita, tem vantagem. Mas, cada vez mais, essa vantagem é residual, à medida que se vai alargando um espaço crítico na Internet, que corresponda aos critérios de isenção e qualidade que até agora apenas se encontravam na imprensa escrita. Com a profissionalização, por exemplo dos blogues, estes poderão fornecer análises de qualidade e alargar o espaço crítico com maior pluralismo. Os sinais de tensão e fricção traduzidos em mecanismos de influência competitivos já são evidentes. Estes e outros exemplos apontam todos no mesmo sentido - a imprensa escrita ganha em inserir-se melhor no sistema de sinergias comunicacionais com a rádio, televisão e Internet (sítios noticiosos e blogues) e utilizar as potencialidades de cada meio para fazer aquilo que cada um faz melhor. Não pode resistir sozinha com uma inovação puramente interior, tem que se inovar tecnologicamente e isso significa não ser apenas escrita em papel. ( No Público de hoje, acrescentado de algumas das vantagens da versão electrónica sobre o papel, menos uma: lê-se melhor no papel. Para já.) * Não será uma crise inevitável, devido ao curso da evolução da tecnologia... (url)
© José Pacheco Pereira
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