ABRUPTO

6.2.06


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: CONCORDÂNCIAS



Depois de ter publicado o conjunto de cartas, mensagens e comentários de discordância, que, insisto, foram a esmagadora maioria de missivas recebidas, desde ontem tenho vindo a receber correspondência noutro sentido. Aqui ficam as "concordâncias".

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O grande problema, o problema suicidário do Ocidente é ele mesmo não querer entender que a democracia e a liberdade foram invenção sua, que a relativação, o escrutínio e o respeito pela diferença foram invenção sua e que o metadiscurso no plural assim como a superação de uma estrita teo-semiose também foi invenção sua (como sabemos, o Mu´tazilismo e outras escolas reformadoras do Kalâm, i.e. da filosofia escritural islâmica do séc. IX, duraram muito pouco tempo e não chegaram sequer a esboçar o que, a partir de final de seiscentos, viria a ser modernidade a Ocidente). Hoje em dia, a sobreposição massificadda e mediática de planos e a relativação sem limites (nem valores) conduz a inferências em que o sentido acaba por diluir-se. Daí que muita gente diga, com se repetisse a mais pura invisibilidade de um slogan: se os EUA têm poder nuclear, por que não o há-de ter o Irão? Tenho dito: apoio a sua sucinta mas clara posição.

(Luis Carmelo)

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Temos de ter cuidado com as susceptibilidades muçulmanas porquê? Quero dizer "nós" enquanto sociedade.
Porque eu posso chocar-me com os desenhos, posso achá-los horríveis, posso querer chamar nomes ao autor - mas é essencial que ele possa publicá-los e que eu possa dizer sobre eles o que entendo - essa é a questão fundamental.
Como é que se pode comparar caricaturas publicadas numa sociedade democrática com propaganda anti-semita? De resto, talvez fosse bom começar a lembrar que o problema da Alemanha nazi não foi a propaganda anti-semita, foi o Holocausto. Não é a mesma coisa. A menos, claro, que se ache também que o Mein Kampf devia ter edição proibida. Há quem ache...

Três notas finais.
Uma. O que pretende Rosa Barros da Costa dizer com "Se os Judeus, nessa altura tivessem reagido como agora o fizeram os muçulmanos, talvez se tivesse evitado o Holocausto"? Acha que os judeus deviam ter feito atentados suicidas nas ruas de Berlim?
Duas. Há um ror de anos, a senhora Tatcher mobilizou os dinheiros públicos que odiava gastar para proteger da ira religiosa Salman Rushdie.
Evidentemente, há quem tenha achado o gesto da senhora Tatcher uma rematada estupidez.
Três. Há alguns anos, a propósito de contracepção e prevenção da SIDA, António publicou no Expresso uma caricatura de João Paulo II com um preservativo no nariz. Haveríamos nós de ver os cristãos queimarem embaixadas portuguesas por esse mundo fora, e até, quem sabe, Pinto Balsemão também? (E note-se: eu compreendo e partilho a ideia do Papa - mas daí a achar que o Papa não é caricaturável vai uma enorme distância.) Nestes dias tenho recordado as palavras de Kennedy em Berlim, há 40 anos. A única resposta decente a este assunto é dizermos: TAMBÉM NÓS SOMOS DINAMARQUESES.

(Luis Teixeira Rodrigues)

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Pegando em MRS ontem à noite e no leitor que refere o caso da chaminé em França, num estado de direito quem se sente ofendido tem a via dos tribunais para ver reparada a ofensa e não a via de queimar bandeiras, atacar embaixadas e ameaçar de morte tudo e todos. E VPV já relembrou a quantidade de “ofensas” que têm sido escritas sobre Cristo e Deus. Eu sou ainda mais radical. Quem não promove o estado de direito, quem apoia terroristas, etc. não tem o direito de exigir seja o que for dos estados direito. E independentemente da fé em si é bom não esquecer que a maioria dos lideres Islâmicos em países Islâmicos não têm promovido a democracia, mas sim as ditaduras religiosas. O pedido de desculpas da governo dinamarquês é ridículo. Num estado de direito o governo não é responsável pelas atitudes dos jornais publicado no país, isso é nas ditaduras, incluindo as muçulmanas. Mas toda a esta subserviência tem uma causa: A DEPEDÊNCIA DO PETRÓLEO. Tudo o resto é acessório.

(Miguel Sebastião)

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Onde estão as vozes todas de indignação quando se goza repetidamente com a imagem de Buda, de Krishna e até do próprio Cristo?
Liberdade significa a possibilidade de se dizer, escrever e mesmo, porque não, desenhar o que se pense e se sinta, sem qualquer censura de lápis azul ou de qualquer outra cor. Não me surpreende que o fundamentalismo islâmico se insurja, pela sua POLÍTICA e não pela sua FÉ - devo frisar -, mas surpreende-me que num continente onde tanto se luta pelas liberdades individuais de cada um se tenha este estilo de reacções como vi dos seus caríssimos leitores.
Indigna-me, espanta-me, surpreende-me que não se perceba que não há intenção no cartoon de ofender fé alguma, apenas de salientar um facto político.

(Jorge Vassalo)

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Eu confesso que a reacção dos seus leitores não me surpreendeu. Muitas pessoas acreditam que se pode manter um regime democrático impondo limites à liberdade de expressão. Para um europeu estes são dias muito tristes, mesmo o governo dinamarquês aparenta ceder. Que raio de democracias são as nossas?

Confesso que me envergonha o facto de os governos ocidentais apresentarem desculpas e reiterarem o respeito pela religião ou religiões. Os governos não têm nada que respeitar religiões, devem tolerar aquelas que são compatíveis com os direitos humanos, e sobretudo zelar para que elas se mantenham fora das práticas governativas. Não me espantava nada que alguém viesse a propor leis anti-blasfémia na UE.
Esta cedência dos governos ocidentais é curiosa, estou a ver a Divina Comédia a ser afastada das salas de aula, e sobretudo as pinturas que mostram detalhes do Inferno de Dante a serem escondidas.

ps Pode parecer paradoxal, mas incomoda-me muito mais o email daquela sua leitora que compara estas caricaturas à campanha anti-semita na Alemanha dos anos 30. É obsceno e monstruoso. Sobretudo quando se constata que o que se passa é exactamente o oposto, estes grupos estão a perseguir activamente aqueles que discordam com eles e a querer abafar a liberdade de expressão noutro país através de manifestações que incluem ameaças de morte e actos de violência. A maioria daqueles que se manifestam não são vítimas de nada, são potenciais algozes.

(Jorge Filipe)

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Quero dizer-lhe que apoio totalmente as suas palavras. É uma questão de liberdade, neste caso de imprensa.

Posso perceber alguns comentários mais desludidos e amargurados, mas não posso aceitar de todo duas coisas :

– Que a minha liberdade de expressão seja posta em causa. Os mais velhos no nosso pais lembram-se do que era isso, e é normamente o principio do fim da liberdade de uma nação de um povo ou de um país.

– A resposta por parte dos paises/populações a estas caricaturas é um pouco exagerada. E parece-me ser motivada politicamente, não sei com que intuito.

(Mário Coimbra)

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Também a mim me doeu o estômago quando li o correio dos seus leitores.

Também eu acho, ou melhor isto não é uma questão de opinião, é uma questão de cerne da democracia, também eu sei que a liberdade de expressão é fundamental.

Qualquer limitação a esta liberdade só pode vir do indivíduo, mas não pode e não deve existir qualquer limitação exterior ao indivíduo – a limitação é a boa consciência ou civismo de cada um.

As caricaturas não saíram (parece-me) na 1ª página do jornal dinamarquês, o assunto remete-se a Setembro passado, os católicos já não incendeiam nem embargam produtos de outros países por motivos religiosos e sim estão no seu direito, como aliás os muçulmanos, de irem para a frente de qualquer assembleia nacional manifestarem o seu desagrado. Seria grossa sobranceria queremos que os muçulmanos modificassem as suas crenças, mas não podemos nós modificar as nossas para lhes agradar, degradando pelo caminho aquilo a que demorámos séculos a chegar – uma democracia avançada – espero eu.

Parafraseando Max Bickford (Richard Dreyfuss na fabulosa série que passou há cerca de 2 anos no 2º canal) – praticamos democracia avançada quando toleramos que se manifestem publicamente grupos de pessoas cujas opiniões nos revolvem o estômago, cujas opiniões são contrárias ao próprio cerne da democracia que lhes permite manifestarem essas opiniões.

Devemos ser firmes nesta convicção, não vacilar.

(Maria Baldinho)

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Primeiro trata-se logo de um jornal europeu e dinamarquês (uma daquelas democracias que nos estão sempre a dizer que são quase perfeitas). Se o jornal tivesse sido americano, haveria mais gente a justificar a não publicação dos desenhos do que o contrário.
Depois, uma coisa é sentir-se ofendido, outra é ameaçar tudo em todos em nome dessa ofensa. Eu entendo perfeitamente que qualquer pessoa se possa sentir ofendida no que respeita aos seus credos. Já não acho legitimo ( inadmissível) que se possa incendiar, partir, querer matar tudo e todos que não concordem com isso. Mas imaginemos que tinha sido caricaturado Jesus Cristo. E a igreja tivesse dito que ofendiam a igreja e os seus acólitos. Apenas com estes actos lá teriamos nós os artigos da esquerda bem pensante que a Igreja era intolerante, fundamentalista, que tinha saudades do Torquemada, do Salazar, etc etc etc. Mas não, como foram os "coitadinhos" dos muçulmanos, já tudo é permitido...
Pior ainda é o medo. A sensação que tenho de medo colectivo é bastante grande. Parece-me que os jornais portugueses que mostraram as imagens fizeram-no num misto de coragem com medo. Sinto que reflectiram muito, muito mesmo se as deviam publicar ou não. Posso estar enganado, mas pelo menos esse misto de medo-coragem reflecte-se pelos jornais e televisões.
O pior de tudo é este relativismo: se justificarmos, se legitimarmos actos como invasões e queima de embaixadas, ameaças ao nosso mundo ocidental como o vivemos hoje, estamos cada dia a alimentar o monstro. Até que um dia....

Apenas um episódio: o meu avô é uma pessoa profundamente católica. Quando um dia o jornal "expresso" publicou o célebre cartoon do Papa com o preservativo, deixou de comprar o semanário e escreveu uma carta a protestar. Até hoje. É esta a diferença entre dois mundos. Uma em que nos podemos sentir ofendidos e respondemos civilizadamente, e outra em que não há espaço para a critica. Pacheco Pereira tem razão. Ou há ou não há liberdade. O resto é retórica, demagogia e populismos.

(Filipe Figueiredo)

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Como sou um leitor seu à muitos anos gostaria de lhe transmitir em relação ao caso das caricaturas um ponto de vista não referido:- Os desenhos têm piada.
Não percebo porque é que o argumento do mérito artistico não é colocado, não são propriamente rabiscos sem o mínimo sentido estético.
Têm sentido de humor, acutilância, traço, nervo...são arte.
Se perdemos o nosso sentido de humor e capacidade de rirmos com católicos, islamitas, xintoistas, budistas e todos os daístas estamos a capar a nossa liberdade.

PS: Coloque um imagem do José Vilhena para chatear os moralistas.(*)

(Gonçalo Carvalho)
(NOTA de JPP: Vilhena tem muitas caricaturas de Deus-Pai e de Cristo.)

(url)

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