ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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2.2.06
A LENTA DISSOLUÇÃO DOS PARTIDOS - FICÇÕES DE BAIXO Era uma vez um partido político no Reino do Volfrâmio. Era e não era. Era porque era, mas também não era. Confuso, não é? Era um híbrido, meio partido político, meio outra entidade nova que se estava a formar, mutante. Um monstro pois, mas um monstro que não era único. Todos os partidos políticos do chamado Arco Constitucional do Reino eram idênticos, mais coisa, menos coisa. Comecemos por analisar o que acontece "em baixo", no rank and file partidário, para depois irmos "para cima". Imaginem um dirigente de segunda linha desse partido, o chefe da organização num distrito, numa "província", numa região. À sua frente tinha uma débil máquina eleitoral, e uma corporação, agrupando os responsáveis políticos cujas carreiras eram reguladas pelas regras internas do partido, quase todas não escritas, e que se relacionavam num sindicato de interesses, esse sim poderoso. A parte da máquina eleitoral era cada vez menos importante e a organização era mais eficaz para outros fins e objectivos do que para obter votos numa eleição. Funcionava para garantir a prova de vida do partido, como factor de identidade para meia dúzia de velhos militantes que tinham "amor à camisola" e já estavam por tudo. Os "idealistas", os que estavam "passados", os que era preciso "renovar" como diziam os "jovens", que tinham normalmente como programa garantir a "renovação geracional", ou seja, retirar aos mais velhos todos os cargos que eles ainda podiam manter, ou todos os obstáculos que colocassem a serem eles sozinhos a mandar. O que era fundamental numa eleição eram as campanhas eleitorais, para que, gastando-se dinheiro, se alimentasse parte da corporação, que obtinha assim, em períodos de campanhas eleitorais, lucros excepcionais. Obtinha-os do lado dos financiamentos, quase todos feitos por debaixo da mesa e fora do controlo das leis, e que permitiam que alguma coisa ficasse pelo caminho. Mas igualmente importantes eram as oportunidades de despesas eleitorais, sempre exigidas como necessárias, mesmo quando era evidente que não havia qualquer correlação entre o dinheiro que se gastava e os resultados eleitorais. As despesas alimentavam muitos burocratas da corporação, que eram intermediários para compras de bens e serviços, "brindes", marketing, publicidade, tipografias, cartazes, fotografias, salas, cantores, grupos rock, carros e camionetas. Antigos funcionários do partido tinham saído dessa condição para criarem "empresas amigas" que obtinham essas contratações em períodos eleitorais e não só, e que forneciam, a preços acima do mercado e com qualidade inferior, os mesmos serviços que antigamente eram oferecidos ou pela militância gratuita ou pela actividade profissional. Pelo caminho ficava muita coisa: "jovens" que recebiam uma "gratificação" pela militância, paga por outros "jovens" que nunca tinham tido na mão tanto dinheiro para pagar a "equipas" cuja existência e actividades não eram controladas por ninguém. "Pais" que apareciam à porta das sedes para receber o "trabalho" dos filhos que tinham "andado na campanha com o compromisso de serem pagos", e entretanto desaparecera o dinheiro. Numa campanha distrital em que se gastou uma grande fortuna, no fim nem um prego sobrou. Por singular coincidência, todos os bens comprados eram perecíveis, ou desapareceram por milagre no dia seguinte: computadores, impressoras, telemóveis, etc., etc. O que é que se esperava desse dirigente de segunda linha? Que ganhasse eleições? Longe disso, ganhar eleições era um resultado superveniente, que muitas vezes trazia complicações reforçando a independência do dirigente em causa, fazendo-o escapar ao controlo da burocracia corporativa. Esperava-se que actuasse da melhor maneira para gerir as carreiras políticas que dele dependiam, que alargasse o campo da empregabilidade para cada um e a sua família, fizesse um upgrade dos empregos e, em tempos infaustos, que não os perdesse. Esperava-se que fosse o chefe do sindicato de dentro, não o intérprete das esperanças de fora. Havia nos livros do partido uns milhares de militantes, mas efectivamente estes não existiam como tal. Em cada secção do partido existiam cem, duzentos, mil inscritos, de que nem dez por cento frequentavam as sedes e as reuniões, e metade destes eram membros da nomenclatura partidária. A esmagadora maioria dos membros que apareciam como pagando cota efectivamente não as pagavam, mas sim o presidente da secção ou o presidente dos "jovens" que os tinham como massa de manobra eleitoral. O pagamento colectivo de cotas era uma maneira de manter o controlo político de secções, federações e distritais, ou de inflacionar o número de militantes para garantir mais poder de negociação e mais delegados em congresso. Numa secção, o número dos militantes habitual eram oitenta, mas na véspera de cada acto eleitoral duplicava pela mão do presidente, que depois os fazia desaparecer até à próxima vez. Assim poupava nas cotas e garantia a reeleição, ao mesmo tempo que atrasava as filiações novas, que metia numa gaveta. Havia casos em que os militantes nem sequer existiam, eram "fantasmas". Moravam todos numa única casa, para terem uma concentração numa secção quando era útil em termos de sindicato de voto "ganhar" aí as eleições. Falava-se de um talho, ou de um número numa rua que era um tapume, e onde "moravam" dezenas de militantes. O controlo dos cadernos eleitorais e dos registos de filiação, das listas de mailing e outras, eram essenciais para manipular eleições. Havia métodos sofisticados e primitivos. Uma vez um responsável dos "jovens" foi descoberto a assinar delegações de voto em série, cometendo o pequeno erro de o fazer em relação a um militante que entretanto tinha ido para a Austrália e deixado de dar notícias. Foi apanhado na falsificação, mas essa pequena circunstância não lhe impediu continuar uma carreira dentro do partido sem qualquer sobressalto. Aliás, nenhuma destas malfeitorias, conhecidas de todos e comentadas ao sabor das amizades e inimizades, tinha qualquer papel nas carreiras militantes. Embora o partido fosse único, havia uma feroz competição entre três grupos organizados, que se aliavam, se separavam, se fundiam e distinguiam conforme as circunstâncias: os "jovens", os "trabalhadores" e os adultos. Através de mecanismos de inerências de voto, era possível potenciar a representação. Os adultos eram na sua maioria os que estavam lá como se aquela fosse a sua família, eram os do "amor à camisola", ou outros nunca lá iam a não ser quando se lhes pedia para ir votar no amigo, no familiar, no colega. Alguns eram antigos "jovens" e mantinham mecanismos a que chamavam de "solidariedade geracional", ou seja, organizavam-se entre si para manter uma transumância do poder à medida que iam dos "jovens" para adultos. (Continua) * Sem partidos políticos, sem representação das "partes" políticas e ideológicas, não há democracia representativa, a única que conheço que existe como democracia. Mas destas máquinas de interesses e carreiras não precisamos. O autor é ingénuo e pensa que há partidos fora deste estado dos partidos no Reino do Volfrâmio? Pensa, o que pode ser a maior das ingenuidades. (No Público) * |