ABRUPTO

7.2.06


LENDO / VENDO /OUVINDO
(BLOGUES, JORNAIS, TELEVISÕES, IMAGENS, SONS, PAPÉIS, PAREDES)
(7 de Fevereiro de 2006)


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Querem um exemplo pelo absurdo do mundo em que estamos, nem por isso tão absurdo como parece? Um exemplo de como daqui resulta censura e medo? Vamos admitir que um dos dois participantes no Prós e Contras de ontem, que disseram o que havia a dizer (António e Vasco Rato), face aliás a uma coligação de interesses, confusionismo, multiculturalismo que infelizmente é hoje o pão nosso de cada dia (não é blasfémia dizer isto?), o caricaturista António se lembra de fazer uma caricatura do Profeta, a pretexto dos eventos actuais. Aliás, a caricatura de Maomé com um turbante-bomba é o mesmo tipo de estrutura metafórica dos desenhos de António, só que pior desenhado. O António chega ao Expresso e entrega a caricatura. Soam sirenes de alarme, porque o jornal se sente “responsável”, o que, dito em linguagem terra a terra, significa que o jornal tem medo das consequências. O Expresso é mais importante do que o obscuro jornal dinamarquês e pode sempre haver alguém que se lembre de singularizar a caricatura de António como um exemplo de blasfémia infiel. O que é que o Henrique Monteiro faz? Não está em causa a qualidade da caricatura. Publica-a, censura-a porque os tempos estão difíceis? O governo desaconselhará, discretamente. E se a publica, vamos ter a bandeira portuguesa no chão e o António a ter que se esconder como os caricaturistas dinamarqueses, a que uma comunicação habitualmente tão solidária, deixa sozinhos nos seus riscos?

É exactamente por estas coisas que o que está em causa é a liberdade de expressão, a nossa, como a entendemos, a única que existe no mundo, a que nos custou muito sangue, aquela sem a qual perdemos a identidade e os valores. E está em causa pelo mesmo mecanismo que no passado dizia que mais vale sermos “vermelhos do que mortos”.

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Que a comunicação social precisa de pensar a sua “responsabilidade”, estamos todos de acordo. Que quase sempre se recusa a fazê-lo, bradando à censura e ao interesse público ou do público, também é habitual. Que nunca teria esse discurso “responsável”, com a veemência com que tem agora, se do outro lado estivesse a Igreja, ou uma qualquer instituição ocidental, também me parece sustentável, por ausência de exemplos a contrario. Por tudo isto, agora que se está inteiramente no domínio da liberdade de expressão, num quadro cuja legitimidade me parece inquestionável (olhem para as caricaturas, gostem ou não delas como caricaturas, e vejam se elas não são o mesmo tipo de humor que Deus-Pai, Deus-Filho, Papas, governantes, eminências, são sujeitos todos os dias?), a conversa sobre a “responsabilidade” é , para não dizer outra coisa, sinistra.

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No meio de uma imprensa que se descobriu "responsável" (*) e que directa ou indirectamente culpa os caricaturistas e o jornal dinamarqueses, salomonicamente colocando no outro prato da balança os excessos da "rua árabe", (o que traduzido do politicamente correcto significa que só culpa os dinamarqueses), valha-nos o artigo de hoje no Público de Teresa de Sousa:
"Há um problema sério no mundo islâmico de percepção do mundo ocidental, que a globalização e o terrorismo islamista, com a resposta da "guerra ao terror", vieram agravar. Há um sentimento real de frustração e de humilhação em relação ao Ocidente e essa é uma questão que preocupa muito justamente a Europa, onde vive hoje uma larga minoria islâmica. Essa preocupação está na base dos seus esforços para promover a tolerância e a compreensão entre civilizações, bem como das suas políticas de cooperação e de ajuda ao mundo árabe. Mas ceder à chantagem e à ameaça, contemporizar e justificar a demência fundamentalista antiocidental ou o arbítrio e a brutalidade de alguns regimes árabes será sempre a melhor forma de alimentar as suas ideologias e de manter aprisionadas as sociedades que dominam.
Haverá uma forma de racismo mais ultrajante do que a nossa complacência? A aceitação de que os valores que entendemos como universais são afinal fruto exclusivo da nossa cultura e da nossa riqueza, não são valores a que podem aspirar e pelos quais têm o direito de lutar todos os povos do mundo? Haverá melhor forma de alimentar a islamofobia no Ocidente do que considerar justificáveis os actos dementes e de violência contra o Ocidente?
É preciso mudar os termos da discussão e pôr fim de uma vez por todas ao politicamente correcto."

(*) Exemplos de hoje, com sublinhados meus:

José Luis Ramos Pinheiro no Correio da Manhã (sem ligação).

António José Teixeira no Diário de Notícias:
"Não há dúvida de que a democracia suporta a falta de sensibilidade e de bom senso e que a liberdade de expressão "é absoluta e não é negociável", como disse o primeiro-ministro dinamarquês. Tal como devem ser absolutamente condenáveis as reacções violentas do mundo islâmico. Não podemos ainda ignorar que alguns imãs aproveitaram as caricaturas para internacionalizar o conflito e criar ambiente de resposta ao "ódio" ocidental. O Irão e a Síria agradecem o pretexto. Mas estas verdades exigem também que se tenha a lucidez de criticar com veemência todos e quaisquer actos humilhantes ou xenófobos. Não podem proibir-se para não nos igualarmos ao obscurantismo despótico, mas devem merecer crítica frontal. O combate da liberdade exige inteligência. A humilhação em nome da liberdade é uma caricatura trágica da nossa civilização."
Eduardo Prado Coelho no Público:
"Quando os caricaturistas dinamarqueses deformam a imagem de Maomé estão, em primeiro lugar, a pôs em causa a dimensão do sagrado. Independentemente do facto de ser Maomé, devemos pôs a questão: é legítimo caricaturar o sagrado?
Em princípio, o sagrado está acima de tudo o mais, e em particular acima das caricaturas, sejam elas quais forem. Aquilo que é sempre uma degradação dos traços poderá estar sujeito à arma visual? Estou convencido de que não, e, mesmo sem ser crente, acredito que o religioso é demasiado importante para que as pessoas façam sobre ele caricaturas. E isto envolve Maomé. Estamos perante questões que põe problemas essenciais. As imagens matam e e o religioso não pode morrer. Pelo menos, não deve."

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© José Pacheco Pereira
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