ABRUPTO

25.2.06


A FRAGILIDADE DOS PARTIDOS NACIONAIS



Quando analisamos a capacidade política dos partidos portugueses, no seu duplo sentido de "produção" de discursos políticos e de eficácia eleitoral, verificamos que ela se mantém a nível do poder local, e é quase inexistente na dimensão das grandes cidades e a "nível nacional". Duas observações já à cabeça: uma é que o que se diz a seguir não se aplica ao PCP, que é um partido distinto dos outros, e ao BE, em que a componente de agit.prop se sobrepõe à organização, mas apenas ao PSD e PS; a outra é que estamos a falar de partidos na oposição, em que a vertente governativa não potencia a acção partidária. Esta última objecção não é de fundo, visto que o poder derivado do acesso à governação não revela maior capacidade dos partidos a "nível nacional", mas oculta apenas as suas fragilidades. Resumindo e concluindo, o PS e o PSD só existem hoje como partidos locais, a nível nacional a sua presença é ténue e cada vez se torna mais débil.

Mesmo nas grandes cidades como Lisboa e Porto, as estruturas distritais e federais só existem como estruturas locais, agarradas às juntas de freguesia e à vereação das câmaras, irrelevantes enquanto organizações políticas para a maioria dos habitantes urbanos, que não têm com as suas autarquias qualquer relação de proximidade. Uma distrital de Lisboa do PSD ou uma federação do PS do Porto, dois exemplos de organizações que já tiveram efectivo poder, não contam hoje em quase nada para a formulação de políticas partidárias e são irrelevantes enquanto máquinas eleitorais, a não ser em sentido negativo. As organizações partidárias têm conseguido sobreviver enquanto órgãos de poder e decisão apenas ao nível da política de proximidade, perdendo cada vez maior poder quando nos afastamos desse círculo mais estreito, para dimensões em que os principais instrumentos de intermediação de influência política são os media modernos.

Uma das consequências desta situação é a crescente transformação dos partidos em máquinas do poder local e regional, com aumento da influência dos autarcas em toda a vida partidária, em detrimento da influência de outro tipo de instâncias mais perto do "nível nacional": deputados e órgãos centrais do partido que detêm cada vez menor autonomia em relação ao partido local. O conglomerado poderoso de interesses que é hoje o poder local resulta mais eficaz do que o poder de qualquer direcção nacional. Manuel Alegre, na sua campanha, quando falava do "medo", referia-se ao efeito deste poder local, dador de emprego, e estritamente controlado, sem alternativas e sem "ar", mais do que às prepotências do PS nacional contra a sua candidatura. Hoje, a política de proximidade deu uma nova dimensão a formas modernas de caciquismo e clientelismo político mais sofisticadas do que as do passado, pois há mais dinheiro, logo mais mecanismos de controlo.

Neste contexto, as direcções e lideranças nacionais de um partido de oposição são muito mais frágeis do que no passado, porque gastam uma parte importante do seu tempo a competir desigualmente com instâncias mais capazes de fidelizar o aparelho partidário e a ter que competir para o exterior num meio essencialmente mediatizado, para que não dispõem de instrumentos eficazes. Com quem conta e o que faz um líder de um partido político na oposição? Voltamos aqui aos dilemas que defrontam Marques Mendes e Ribeiro e Castro.

A mediatização da política valorizou desmedidamente o papel individual da liderança, em detrimento de órgãos colectivos. O líder é suposto "passar" bem na televisão e espera-se tudo dessa prova. É, desde logo, uma grande responsabilidade que recai sobre uma pessoa, alimentada pela espectacularidade e pelo populismo tendencial da sociedade mediática. Hoje isto considera-se quase como uma evidência, mas reportando-nos a líderes como Sá Carneiro, Freitas do Amaral, Álvaro Cunhal e Ramalho Eanes, que conduziram grande parte da sua acção política em períodos menos dominados pela televisão, percebe-se que há toda uma série de elementos de liderança que pouco têm que ver com "passar a imagem". A ascensão de Santana Lopes representa o movimento a contrário, mais conforme com os tempos de dominação mediática. A sua queda não contraria a tese geral.

Acresce que os órgãos próprios do topo dos partidos - comissão política, secretariado - foram normalmente eleitos em função da correlação das forças partidárias, como emanação do aparelho "de baixo", a que se junta um pequeno grupo de próximos do líder, que lhe são pessoalmente leais, mas que não chegam a fornecer consistência aos órgãos de direcção. Estes são cada vez mais federações de grupos e menos uma equipa coesa. Para além disso, são cada menos úteis como órgãos de aconselhamento, visto que as fugas sistemáticas de informação os torna inadequados a decisões importantes. A tendência é para as lideranças dirigirem o partido na base da conjugação entre um grupo de pessoas leais, um grupo dentro de um grupo, e outro tipo de órgãos informais destinados a dar o suplemento de "prestígio" e capacidade a órgãos formais que não os têm. Daí a proliferação de task forces, interiores, com um poder que não é escrutinado pelos órgãos partidários, e de "órgãos de prestígio" que não têm um efectivo poder na condução da política partidária. São tudo soluções de recurso e não resolvem o problema de fundo: dar aos órgãos formais a capacidade política e o prestígio público que eles não têm e fazê-los funcionar com discrição e reserva nas decisões delicadas e com influência enquanto "vozes públicas".

Vamos admitir que um líder deseje efectivamente unir o prestígio e a influência pública de uma direcção partidária com a sua legitimação formal, e vamos admitir que consegue fazer a verdadeira revolução que é inverter o tipo de escolhas aparelhísticas que são dominantes nos partidos. Encontrará então outro tipo de obstáculos: a completa falta de competitividade que têm as carreiras políticas, em todos os planos, a começar no simbólico, com carreiras profissionais, e a resistência mais que justificada a fazer política em democracia nos dias de hoje. Não é fácil convencer alguém que pela sua qualificação profissional é um alto quadro num banco a ser porta-voz da política financeira de um partido de oposição. A administração do banco, mesmo que ele dela faça parte, lhe dirá que é inconveniente. Não é fácil convencer um grande advogado a ser porta-voz em questões de justiça ou a dirigir um grupo de estudo sobre corrupção, sem que os seus colegas lhe lembrem que isso prejudica o escritório. Por aí adiante. A omnipresença do Estado, o seu carácter ainda muito clientelar, a fragilidade da sociedade civil em oferecer espaços alternativos, a má fama da vida política e a degradação das condições do seu exercício aparecem como um contínuo em relação à má qualidade dos partidos. Pode-se sempre argumentar que é possível começar de novo, formar gente nova e sem vícios, mas não é uma solução exequível a curto prazo e oferece as mesmas dificuldades.

Estas dificuldades são reais e só podem ser superadas através de uma requalificação da política, que passa não só por profundas mudanças nos partidos políticos, como também na forma de a fazer. São precisos novos instrumentos e novas formas que permitam esta qualificação das direcções "de cima", que só podem ser levadas adiante e ganhar credibilidade quando se defronta a dupla resistência da mediocridade e dos interesses instalados, coisas que os partidos deixaram crescer até um nível crítico. Sem isso, nem por baixo, nem por cima, os partidos conseguirão manter a influência cívica na sociedade.

(No Público de 24/2/2006)

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© José Pacheco Pereira
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