ABRUPTO

7.1.06


O CÁCERES

Um pequeno grupo de três amigos comemorou a noite inteira, no longínquo ano de 1967, de sol a sol, já não sei bem o quê. Um era eu, outro, o João Serra, hoje chefe da Casa Civil do Presidente, e o terceiro, o Cáceres Monteiro. Sei que começámos junto do Campo Grande, passamos para o Aeroporto, um dos raros sítios abertos na noite lisboeta, depois para a Rotunda do Relógio, e terminamos uma noite tipicamente estudantil de boémia, junto da Igreja da Avenida com o mesmo nome. Pelo menos, eu e o João Serra não éramos lisboetas, e por isso a vinda para a universidade e para a grande cidade tinha todas as novidades, e muitas oportunidades. O trajecto deve ter sido este, a pé, conversando muito, com aquela vontade de fazer e dizer tumultuosa de quem tem tudo à frente e pouco atrás.

Se não me lembro o que comemorávamos, provavelmente a mera existência, recordo-me muito bem do contexto em que o fazíamos. Éramos os três “novos estudantes” de Direito, o nome que nos dávamos para não tresandar à praxe associada com a designação de “caloiros”, e vínhamos de um jantar destinado a “integrar” os estudantes do 1º ano na Associação de Estudantes. Existe um panfleto a stencil com o apelo que os “novos estudantes” associativos faziam aos seus colegas para virem para a Associação, com os nossos nomes, meu, do João e do Carlos.

Ser “associativo” nesse ano, ano de charneira que marcou o fim do refluxo das lutas estudantis, em vésperas do annus mirabilis de 1968, era ser do “contra”, começar a deixar rasto na PIDE, que coleccionava estes abaixo-assinados. Nenhum de nós, e de muitos outros, hesitou um segundo que fosse. Essa era a nossa obrigação, e a ideia de que nesse acto havia uma opção, uma escolha, uma alternativa era-nos alheia. Era assim, porque tinha que ser assim. Nenhum de nós media consequências, embora soubesse que existiam. O mundo era simples, então.

Cada um dos três permaneceu fiel a tudo o que disse nessa noite. Não fez, ou não conseguiu fazer, tudo o que pensava, mas o primeiro a partir, o Cáceres, foi certamente inteiro e juvenil como estava nessa noite longínqua. Nessa noite, tenho quase a certeza que entre as pequenas malfeitorias que fizemos, mudámos as horas do relógio da Rotunda que, na melhor tradição nacional ficou meses desacertado. Não sei se o adiantámos ou atrasámos, só sei que para nós ficou sempre um pouco fora de horas, num gesto de subversão, de desordem, que tinha todo o sentido porque, mais do que o relógio, era o país que queríamos desacertar. A 25 de Abril ele acertou-se, e o Cáceres fez parte daqueles que o ajudou a acertar. Antes, durante e depois, até anteontem.

(Na Sábado.)

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© José Pacheco Pereira
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