ABRUPTO

22.12.05


OS DIREITOS DO ESTADO E OS NOSSOS



Do mesmo modo que se verificaram abusos com as escutas telefónicas, está-se a verificar o mesmo tipo de abusos com o fisco e está toda a gente caladinha. Há medo nessa caladinha atitude, culpa e medo. A mim não me interessa a culpa, mas sim o medo.

Comecemos pelas escutas, porque são uma história exemplar. A sua facilitação data do ministro António Costa num anterior governo Guterres e foi aplaudida com um consenso generalizado. Quem é que não queria que polícias e magistrados tivessem as armas necessárias para combater a criminalidade organizada, o grande crime económico, a lavagem de dinheiros, a droga, a corrupção, as máfias e o terrorismo? Ninguém.

Depois aconteceu o que se podia prever, conhecendo melhor o país e as suas gentes. O que devia ser um método de excepção tornou-se a regra e depois um abuso da regra. Não se sabe ao certo quantos telefones estão a ser escutados, mas sabe-se que são muitos. O número indicado pelo procurador-geral da República de oito mil é preocupante. Depois, o que devia ter objectivos concretos de combate a determinados tipos de criminalidade, que precisa das escutas para a investigação e não se deixa apanhar por outros meios, tornou-se a primeira e mais fácil arma de investigação, abusada para vigiar mais do que os suspeitos do crime, os "suspeitos" de não gostarem do procurador-geral e dos magistrados.

A acusação grave que Miguel Sousa Tavares fez e que eu subscrevo é a da utilização das escutas como instrumento de defesa e ataque corporativo por parte de alguns juízes e magistrados. É uma acusação que não precisa de demonstração. As escutas divulgadas, puramente do âmbito político, mostram que alguém (e esse alguém só podem ter sido polícias, magistrados ou juízes) abusou de um instrumento especialmente delicado, desviando-o da sua finalidade exclusiva, sem cuidar da regra que impõe o seu uso apenas em casos de necessidade justificados. E esse "alguém" fê-lo não tanto através da violação do segredo de justiça (de que não sabemos quem tem responsabilidade), mas pela realização, transcrição e anexação de escutas indevidamente realizadas a processos em que era só uma questão de tempo até virem a público (e aqui sabemos quem tem responsabilidade). A intencionalidade das escutas - apanhando conversas de políticos sobre a magistratura e o procurador-geral da República - mostra a sua gravidade, porque não é crime nenhum ter dessas conversas, só é ilegal escutá-las e divulgá-las.

Mesmo que não houvesse uma intenção perversa, há certamente grave negligência. Dá trabalho e exige profissionalismo fazer investigação usando os recursos tradicionais, logo usam-se as escutas indiscriminadamente porque é mais fácil. A negligência que já existia na investigação tradicional emigra para as escutas. Estas, mesmo em processos em que seria legítimo serem usadas, são muitas vezes feitas de tal maneira descuidada que acabam por ser anuladas como meio de prova. Tudo vive do puro facilitismo - dá-se-lhes a bomba de neutrões e eles, em vez de usarem uma vulgar granada ofensiva, matam tudo à volta, usando a bomba e não a granada. É como matar os peixes a dinamite, para apanhar um, morre o rio ou o lago inteiro.

Há quem diga, talvez com alguma razão, que até agora não houve problemas porque não se tratava de escutas a figuras públicas e a políticos. É verdade, mas pode tornar-se mentira quando se trata não apenas de escutas, mas da combinação de escutas indevidas com violação de segredo de justiça. Ora isso não acontece com as pessoas comuns, porque aí ninguém está interessado em divulgar as escutas e aqui está. A combinação entre escutas de conversas, sem conteúdo criminal ou utilidade processual, e a sua divulgação para atingir os seus autores como figuras públicas lança uma luz tenebrosa sobre as duas coisas: as escutas e a violação do segredo de justiça.

Pode haver sempre a tese conspirativa de que as fugas se destinam a "queimar" as escutas e a abrir caminho contra a sua utilização legítima. Pode, de facto, ser verdade, porque a ingenuidade nunca fez bem a ninguém nestes casos. Mas se não fosse a real incompetência e abuso já verificados teria sido assim tão fácil "queimá-las"? Se magistrados, polícias e juízes não tivessem sido tão facilitistas e abusadores com o poderoso instrumento que tinham nas suas mãos, teria sido possível este backlash contra as escutas, que se arrisca a permitir que criminosos fiquem por punir, apenas porque se abusou de um meio de investigação e prova?

Mesmo que siga a explicação mais simples, a de que em Portugal tudo isto acontece por uma combinação de negligência, facilitismo, arrogância (e a arrogância corporativa é maior no seio da justiça do que em outras áreas profissionais), os sinais são perigosos quando vemos o mesmo tipo de mecanismo emergir na administração fiscal. No fisco está a caminhar-se no mesmo caminho que levou António Costa a abrir a porta a todas as escutas. Como no caso da legislação de Costa, a atitude expedita do fisco é saudada pela opinião pública, que aceita sem segundos pensamentos tudo o que pareça punição populista. A fraude e a evasão fiscal são muito importantes em Portugal, mas duvido que este tipo de métodos e processos apanhem mais do que os mais fracos e os que têm menos responsabilidade e meios, para deixarem impunes os mais poderosos e assessorados.

Para além do mais, e volto ao paralelo com as escutas, muito do que está a ser feito no fisco revela a real incapacidade dos serviços para investigar como deve ser, preferindo métodos universais e expeditos de suspeição, baseando-se numa desconfiança genérica do fisco para com os contribuintes, que trata como sendo sempre culpados salvo prova em contrário. A ideia ventilada entre outros pelo Presidente da República, e saudada pelo fisco que já a aplica, conduz à generalização da inversão do ónus da prova, ou seja, somos culpados e temos de provar que somos inocentes Este tipo de métodos protege a ineficácia da administração fiscal e diminui significativamente os direitos dos contribuintes honestos e cumpridores, amalgamados cada vez mais com os que o não são.

Já experimentaram tentar saber se devem alguma coisa ao fisco e nunca receber uma resposta clara, ou, recebendo-a, uma semana depois descobrir que afinal deviam alguma coisa, que afinal verdadeiramente não deviam? Já experimentaram, numa selva cada vez mais complicada de impressos, fórmulas e procedimentos, ter a sensação kafkiana de subirem uma espiral de culpa, de juros e sanções sem qualquer defesa? A escalada neste processo está em pleno curso, acompanhando um fisco que se torna cada vez mais complicado e burocrático, onde os erros são inevitáveis, crescentes e muito difíceis de corrigir. Não basta remeter para a Internet para desanuviar as repartições, é preciso ter em conta que a complexidade das declarações é enorme e os mecanismos hostis a quem queira ser honesto e fáceis de ludibriar por quem tenha dinheiro para pagar consultadorias fiscais.

O fisco anuncia agora, com aplauso generalizado, ir publicar uma lista dos devedores como sanção e opróbrio público. Pode-se admitir que ao fisco seja dada possibilidade de publicitação de "listas negras", só que tal não deve ser feito sem uma concomitante responsabilização. O fisco pode publicar as listas que entender, mas tem de garantir a sua fidedignidade e pagar pelos seus enganos. Publicam a lista, mas seria bem estarem obrigados por lei ou norma a rectificar com publicidade maior os seus enganos, pedindo desculpas aos contribuintes publicamente e indemnizando-os. Se for assim, acredito que qualquer lista vai ser feita com o máximo cuidado, se não for assim, vai lá parar tudo de modo atabalhoado e basta 5 por cento de erros para atingir milhares de pessoas.

Ninguém se pergunta por que razão a primeira lista a ser publicada não devia ser a dos autores de fraudes ao fisco ou dos grandes devedores. Se é verdade que essa lista tem 800 mil contribuintes em falta, algo de mal existe tanto no fisco como nos putativos devedores, que vão ser amalgamados numa lista em que coexistem situações muito distintas. O seu número anunciado revela muitos outros fenómenos sociais antes de revelar comportamentos censuráveis. E revela também a gigantesca incapacidade administrativa do fisco em lidar com as dívidas que deixou acumular.

Estes métodos expeditos de actuação, mexendo com a dignidade pública de cada um, que é a "sanção" da lista, podem agradar ao populismo fácil e encher os cofres do Estado momentaneamente, mas nunca impedirão a fraude fiscal, ao mesmo tempo que vão erodindo os nossos direitos e garantias. Porque, do mesmo modo que os cidadãos o são porque pagam impostos para a sua comunidade, não podem ver os seus direitos, a começar pela sua imagem pública, postos em causa por erros da administração, que deve saber que também tem de pagar por esses erros e com juros. No dia em que o Estado e os seus agentes pagarem pelos seus erros, como os cidadãos pagam, talvez se tornem mais eficazes e responsáveis e tenham mais respeito pelos direitos comuns, os direitos dos homens comuns.

(No Público de hoje.)

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© José Pacheco Pereira
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