ABRUPTO

29.12.05


O CAMAURO

( Rafael, Retrato de Júlio II usando o camauro)

Quando Bento XVI apareceu este Natal com o camauro na cabeça, as fotografias circularam na Internet como sendo montagens digitais. O Papa vestido de Pai Natal? Tinha que ser montagem. Mas não era. Os nossos internetianos deviam ver mais quadros renascentistas, e reconheceriam o veludo e o arminho antigo que nenhum Papa usava desde os anos sessenta.

Mas o Papa não apareceu nestes dias nos jornais apenas como um surpreendente ícone da moda, mas surge com cada vez mais frequência em editoriais (o Público não é excepção) e, por estranho que pareça, em artigos e ensaios. Livros originais e antologias temáticas incluem textos de e sobre Ratzinger, com uma frequência rara para qualquer Papa recente, e ainda mais rara para um início do pontificado, quando não existe uma obra significativa própria como chefe da Igreja católica. Autores cujos interesses pela teologia, ou sequer pela religião, eram escassos manifestam curiosidade intelectual pelo novo Papa.

A solidez teórica de Ratzinger, solidez não apenas teológica, mas filosófica e cultural num sentido mais geral, o seu longo contacto com o meio dos intelectuais europeus, conhecendo as suas polémicas e quer as suas interrogações, quer as suas modas, está a dar frutos. Ratzinger está a colocar a reflexão cristã, gerada no cume do poder eclesial, que é por excelência o papado, no centro do debate público, de onde estava há muitos anos afastada. Ou, numa fórmula mais moderada, está a torná-la aceitável como objecto de discussão intelectual, o que é uma verdadeira mudança nos costumes europeus e americanos recentes. Este processo é interessante para a história do movimento cultural europeu e, penso, está apenas no seu início. O nome de Bento XVI, ou mais provavelmente para já de Ratzinger, vai-se tornar citado e citável, em círculos onde nunca o foi o de João Paulo II e dos seus predecessores desde o século XIX.

Claro que este movimento de influência não teria sucesso se viesse apenas de dentro da Igreja, mas está conjugado com o caminhar de uma série de intelectuais para novas formas de conservadorismo político, para um retorno a um sistema de valores políticos e societários tradicionais, ultrapassando a usura que estes tinham sofrido com o impacto da Revolução Francesa e a dominação ideológica do marxismo. Esta redescoberta nos dois lados do Atlântico associa, num caminho comum, trajectos muito díspares, desde o neoconservadorismo norte-americano à reflexão europeia sobre os fundamentos culturais da Europa, feita recentemente a propósito do Preâmbulo à Constituição Europeia. Um caso típico destes trajectos em Portugal é o de João Carlos Espada e da revista Nova Cidadania que anima. Como era inevitável, encontraram, na reflexão que estavam fazendo, o pensamento cristão, uma das mais antigas e consolidadas tradições europeias de reflexão, que, desde Tomás de Aquino até Karl Jaspers, mantém uma relação muito forte com a história cultural da Europa, aparentemente enfraquecida pelos últimos duzentos anos de "descrença" e pelas ideologias assentes na fé na história do século XIX e XX.

Há factores na própria história do cristianismo europeu que explicam esta reaproximação, mais significativa porque um revivalismo religioso, que há alguns anos atrás fazia parte de quase todas as previsões futurologistas, não parece estar à porta. De facto, o que se passa, mais do que um revivalismo religioso, é um sentimento de comunidade, de pertença a uma mesma tradição cultural, tornada urgente pela cintilação civilizacional gerada pelo conflito com o fundamentalismo islâmico.

O facto de este movimento se estar a dar mostra como as tradições religiosas, como factos culturais e civilizacionais, estão profundamente embrenhadas na identidade social, mesmo quando esta parece estar ameaçada pela globalização e pela massificação dos consumos mundiais. E mostra também como o cristianismo resiste à competição com outras religiões em sociedades muito abertas como são as do "Ocidente". Mesmo religiões e práticas orientais que estiveram e estão na moda, desde os anos sessenta, como o budismo zen, apelaram à sedução essencialmente na base de uma experiência estética que se pretendia mística, e popularizaram-se como "modos de vida alternativos", mas tiveram apenas um impacte marginal no centro do nosso pensamento.

Esta situação ainda é mais nítida quando tomamos em conta o dinamismo teológico do cristianismo, quer reformado, quer católico, em contraste com as dificuldades do islão em ter uma interpretação dinâmica, capaz de fazer a adaptação às mudanças da história e da sociedade. O islão, na ausência de autoridades interpretativas legitimadas, fixou-se no cânone da sua origem e não reflecte a modernidade, nem convive facilmente com a laicidade. Por aqui se percebe que o facto de o cristianismo ser uma religião que tem uma Igreja, como materialização na terra da presença de Deus e, dentro dessa Igreja, na versão católica, ter uma hierarquia que termina no Papa, lhe permite falar para tempos diferentes de modo diferente, mesmo quando é a mesma Voz.

O Papa Woytila reforçou os laços da Igreja com o catolicismo tradicional na Europa, fazendo pelo caminho uma revolução política a partir da Polónia para o Centro e Leste da Europa, e incentivou o catolicismo em terras de missão, na sua função de Papa viajante. Morrendo diante de nós como morreu, falou também a sociedades cada vez mais de velhos e doentes, como é a nossa. Valorizou na Igreja os factores de continuidade, o catolicismo popular, o culto mariano, o papel das comunidades tradicionais, da família, do ensino. Gerou assim uma aproximação da Igreja ao homem comum que fora iniciada por João XXIII no concílio Vaticano II.

Bento XVI parte deste legado e parece, num primeiro olhar, voltar-se para a Europa, para a terra onde Pedro e Paulo construíram a "sua" Igreja, e onde, as sociedades dos dias de hoje são sociedades assentes na "família terrestre" e não na "família celeste" e por isso dependem da felicidade terrestre e não da celeste. Aqui o "espírito de missão" e a evangelização encontram um tipo de dificuldades muito diferentes das de fora da Europa, ou das de outros tempos europeus. Mas a sensação da perigosidade do mundo "lá fora" criou um ambiente favorável ao retorno a uma identidade cultural, na qual a Igreja tem um papel histórico e quer ter um papel actual.

É verdade que o cardeal-patriarca de Lisboa preveniu, numa missa recente, que o "cristianismo não é uma doutrina", o que se compreende para os homens de fé. Mas, para os que não a têm, Ratzinger está a contribuir para que, pelo menos como "doutrina", ele entre nas nossas reflexões. É o sinal de um "assalto" aos intelectuais, como há muito tempo a Igreja não tinha conseguido fazer.

(No Público.)

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© José Pacheco Pereira
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