ABRUPTO

27.10.05


TEMAS PRESIDENCIAIS ENTRE SOARES E CAVACO

(No Público de 27/10/2005)



Discursos presidenciais – São todos muito pobres porque são modelados pela enunciação de “propósitos”, “desígnios”, “ideias para Portugal”, tão vagos, genéricos e retóricos como os slogans de campanha. É preciso conhecer muito bem os candidatos e perceber as nuances, saber quais são os não-ditos, para entender a lógica das candidaturas. Hoje a retórica está tão estabelecida no discurso político, que é cada vez maior o seu efeito de ocultação. O que salva estas eleições do vazio discursivo, é que os candidatos principais são bem conhecidos do eleitorado, e por isso são mais facilmente “lidos” nas suas efectivas intenções.

“O que nos distingue? Estilo e conteúdo” - Disse Mário Soares e é verdade. Só que quer o estilo, quer o conteúdo, já lá estavam antes da campanha. Esta é tão dominada por convenções, que é preciso escavar mais fundo para perceber as diferenças. A pose e encenação valem hoje mais do que os discursos, fazem “falar” a coreografia dos actos de apresentação. São eles que temos que analisar para ir mais longe.

Encenações - Em nenhum momento da campanha houve uma pura encenação autónoma, e quer Soares, quer Cavaco, cada um já se constrói face ao outro: um tem apoiantes na sala, o outro só os mandatários, um entrega o cartão, o outro só entrega depois de ganhar as eleições, um aceita perguntas á cabeça, outro recusa-as, para depois as aceitar quando verifica que o adversário o faz, um intitula-se de “político profissional”, o outro recusa o epíteto, um afirma-se independente dos partidos, o outro nega a condição de “suprapartidário”. Há todo um diálogo coreográfico, como se ambos “falassem” por estes gestos quer entre si, quer connosco. E é aqui que estão efectivamente a falar.

Pose – Toda a pose é uma metáfora programática e de poder. Cada um coloca-se diante de um Portugal imaginário, feito de densidade significativa, escolhendo lugares, posturas, silêncios e falas. A solidão desejada de Cavaco, a sua pose ritualistica, a sua relação com os símbolos do poder, as bandeiras alinhadas, a perfeição do cenário, o controlo do espaço à sua volta, onde só entra a esposa, pretendem acentuar a ruptura do exercício do poder com os actos quotidianos, valorizar o sentido de estado da função presidencial.
Soares, pelo contrário, chega normalmente a uma porta de hotel, conversa, acelera e recua, olha para trás, acompanha um jornalista com quem conversa, passeia mais do que anda. Soares é mais terra à terra, mais natural, menos convencional, domina melhor o espaço à sua volta, por isso sente menos necessidade de o organizar. Onde Cavaco está contido e tenso, Soares está à vontade, é mais corporal nos gestos, a qualquer momento espera-se que dê o braço a um amigo. Nesta diferença ambos são naturais, embora depois a encenação acentue artificialmente o que os separa. Soares, a quem Cavaco irrita, tende a ainda mais acentuar a sua liberdade corporal, a dizer o que lhe apetece, a fazer o que lhe apetece. Cavaco não se pode dar a esse luxo, nem se sentiria bem nele.

Soares é um típico membro de uma elite, preparado por toda a sua vida a estar naturalmente próximo do poder, mesmo quando, antes do 25 de Abril, era perseguido. Cavaco forçou a sua entrada numa elite que não o reconhece como um dos deles, que o verá sempre, como Soares o faz, como um parvenu. Só que, quando Cavaco tem poder, tem mais poder e quando Soares o tem, tem menos.

Palavras contidas, palavras distraídas – Cavaco falou pouco, Soares falou muito mais e falou de mais. O valor da palavra é aliás diferente em ambos. Cavaco valoriza mais o gesto, a postura, a locução severa e escassa. Sente-se menos à vontade do que Soares na fala, o que o leva acentuar a sua característica de acção.
No actual sistema político isso tem vantagens e inconvenientes. Por um lado, valoriza na sua imagem o papel de realizador, de “trabalho” (a frase “deixem-nos trabalhar”, ou a metáfora do “bom aluno” só podiam ter vindo de Cavaco e nunca de Soares), por outro torna mais importante a autoridade do que diz. Falando pouco e escrevendo pouco, obtêm maior efeito das suas palavras, e os seus escritos pesam mais (Soares escreve muito mais do que Cavaco, mas os seus artigos raramente tem impacto).
O que faz Cavaco é um procedimento adequado em períodos longos, em que a raridade das intervenções torna-as escutadas e influentes. Mas numa campanha eleitoral, com muitas situações em que o controlo da palavra não existe ou é partilhado, como nos debates, é um inconveniente.
Com Soares é o contrário. Soares é um grande conversador nato, um mestre da conversa mais do que do discurso, por isso prefere como terreno o maior número possível de debates. Terá para eles uma só condição, evitar que sejam demasiado específicos ou técnicos, dado que Soares evitará o confronto entre saberes específicos, como seja a economia, que, quer se queira quer não, entrará sempre nos debates como questão global. Soares insistirá por isso em debates colectivos que o resguardam mais.

Linha de ataque – Uma linha de ataque vinda da candidatura de Soares é o combate ao pretendido “presidencialismo” da candidatura de Cavaco. Duvido que resulte, até porque não tem objecto. Cavaco nunca se revelou “presidencialista”, e a maioria dos seus apoiantes nunca defendeu com a sua candidatura qualquer reforço dos poderes presidenciais. As excepções são excepções ou são exercícios de má fé destinados a comprometer o candidato. Quando Soares ataca uma direita “batida nas urnas”, com um “ messianismo revanchista” que pretende uma “subversão do sistema presidencial” – as palavras mais duras e politizadas da sua intervenção programática - pretende conjurar um fantasma, mais do que o esconjurar.

Linha de ataque 2 – Uma outra linha de ataque de Soares a Cavaco é antiga: Cavaco não teria passado de luta contra a ditadura. Foi avançada por António Tabucchi, em resposta a um artigo que escrevi no Público , e foi retomada esta semana por Medeiros Ferreira no Diário de Notícias:

Com efeito, o professor, embora não tenha sido um fura-greves como estudante, nos anos 60, resignou-se perante a ditadura, e não se conhecem atitudes suas contra o regime salazarista e marcelista. (…) Não foi um bom começo para quem quer ser presidente da República em democracia, (…) além de demonstrar fraco entendimento sobre os decisivos momentos históricos do seu país. “

Também me parece que a candidatura de Soares não irá longe por aqui. Caso tomássemos a sério este critério de exclusão, António Guterres, que também não tem qualquer passado de luta contra o regime não podia ter sido Primeiro-Ministro, e o mesmo acontecia com Maria de Lourdes Pintasilgo. E, tomando à letra este “argumento”, por maioria de razão, estariam banidos da vida pública portuguesa muitos políticos como o socialista Veiga Simão ou o centrista Adriano Moreira, que foram ministros de Salazar e Marcelo.

(Continua para a semana, falando-se de partidos e candidatos anti-partidos, independentes e “dependentes”, Soares e o PS, Cavaco e o PSD, a comunicação social, Europa, outras linhas de ataque, e outras coisas mais).

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© José Pacheco Pereira
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