ABRUPTO

23.9.05


VAMOS ESCOLHER O “FIXE” OU O “CONFIÁVEL”?



Parece que os portugueses preferem ter como “chefe no trabalho” Mário Soares e como “professor do filho” Cavaco Silva, preferem ter “como companhia ao jantar” Mário Soares e “emprestar o carro” a Cavaco Silva. Se eu quisesse ser mau para Soares diria que nestes inquéritos ele aparece com um perfil muito próximo de um outro presidente que não estima por aí além, George W. Bush. A maioria dos portugueses gostaria de jantar com Soares, como a maioria dos americanos de ir a um barbecue com Bush, voltando as costas a um pesadelo que seria ter de aturar Al Gore. E eu aqui, percebo muito bem os portugueses.

Mas ainda os percebo melhor quando, - registem a letras de fogo - , desejam Mário Soares como “chefe no trabalho”, todo um programa. Sabem exactamente o que isso significa? Sabem, sabem, todos sabem, é por isso que respondem assim. Pena é que apenas uma pequeníssima minoria de portugueses tenha visto a série da BBC The Office, uma das que devia fazer parte (com o Sim Senhor Ministro) de um currículo moderno de educação cívica e política do secundário.

Mas há mais. No mesmo inquérito (do Expresso) é feita uma pergunta séria e responsável, principalmente nos conturbados dias de hoje: “a quem entregava a organização das suas contas pessoais?” A Cavaco claro. Aqui não é apenas Cavaco que vence, há um esmagador desequilíbrio, o maior de todos, entre 22% a favor de Soares e 69% a favor de Cavaco. Mesmo que a Presidência não seja para gerir o nosso dinheiro, já que Jesus Cristo nada sabia de finanças, dá que pensar.

Claro que nem tudo nesta sondagem favorece Cavaco. Os portugueses reconhecem que Soares fez mais pelo país do que Cavaco, e eu, assim perguntado, responderia da mesma maneira lembrando-me de 1975. Num momento conturbado e perigoso, num momento revolucionário, Mário Soares fez muito por Portugal, e sem o que ele fez, o que Cavaco fez de bom (nem o que de mal fez Soares) não seria possível. É uma questão fundacional, e será por essa que Soares ficará na história. Os portugueses são sábios, mas duvido que seja razão bastante para lhe entregarem pela terceira vez a Presidência.

Também não pediriam a Cavaco um conselho para um livro, só 35% o fariam, contra 60% a Soares, a maior diferença a favor de Soares. Muito bem, também aqui são os portugueses sábios, porque, como revela a antologia dos “poemas da minha vida”, distribuída pelo Público, Soares tem poemas da sua vida, coisa que alguns dos outros autores não têm de todo. A antologia de Soares revela a sua vivacidade, gosto, e leituras e é das melhores, da série.

Foi por isso que Soares proclamou a sua vantagem sobre Cavaco em matéria de “cultura humanística”, cuja ausência tornava Cavaco um candidato não aceitável para Presidente. É verdade que a cultura das elites portuguesas formadas nos anos quarenta, na tradição liberal e republicana, inclui uma dose sólida da literatura do século XIX e XX, com ênfase na geração dos Vencidos da Vida, a que depois se acrescentam os autores que um homem “letrado” conhecia, quase sempre seus contemporâneos.

Mas essa cultura tem sérias limitações para nela se fundar uma superioridade “humanística”, a não ser numa visão republicana, jacobina, maçónica. É por exemplo omissa de qualquer dimensão científica séria (as pessoas continuam a achar que cultura é saber o número de cantos dos Lusíadas mesmo que não se saiba o principio de Arquimedes, ou o que é a inércia), pouco tem de filosofia, teoria política (que nos anos da ditadura ficava para os “fascistas” que liam Maquiavel, Hobbes, Schmidt), e nada de economia, mesmo na forma filosófica clássica da “economia política”. Era dominada pela retórica, mesmo quando esta servia boas causas como a democracia.

Havia excepções, como há sempre, mas esta era a regra para a geração de Soares, de que o nosso antigo Presidente é um bom exemplo, a que acrescem os seus dotes de escrita e de conversador, uma arte em extinção que cultiva como ninguém. (Faço aqui uma nota de passagem, nos meus trabalhos sobre a oposição ao salazarismo, onde havia muitos escritores, entre as pessoas que melhor escreviam contam-se Cunhal Leal e Mário Soares. Descrição de um evento feita por Soares é sempre vivíssima, mostrando uma percepção e observação fina, quase sem paralelo.)

Mas atenção, há aqui uma outra questão oculta, que se a esquerda fosse o que diz ser, devia soar todas as trombetas bíblicas, há aqui uma clara divisão social, uma diferença de classe, de meios, de vida, e também de tempo, de idade. Cavaco nasceu em Boliqueime entre o pobre e o remediado e Soares em Lisboa e nasceu rico. E nasceram em tempos diferentes de ser jovem e de ser adulto, em diferentes gerações. É por isso que é preciso muita prudência para se usar a “cultura humanística” como arma de arremesso, porque acaba por ser mais uma afirmação de superioridade da condição social, do que uma crítica política.

Sintetizando e concluindo, o Expresso titulava “Soares é fixe, Cavaco é de confiança”. Duma vez por todas, o Expresso acerta num título. Os portugueses gostam de Soares (já gostaram menos, já gostaram mais, já gostam menos outra vez), mas confiam em Cavaco. Resta agora saber que escolha farão. A única coisa que sei é que essa escolha vai depender do grau de racionalidade da campanha, numa vida política em que ela não abunda. Se Cavaco acentuar a racionalidade da sua campanha, ganha contra um Soares que tenderá a impregna-la de afectividade, de irritações, ao mesmo tempo de drama e de boa disposição. É contraditório? É, mas a personagem é assim, virtudes e qualidades coladas como grude, “fixe” na aparência, e com os seus, e autoritário e duro com os que estão fora da família e que ousam defronta-lo.

Como farão os portugueses? Há muita coisa a favor de Soares, porque a atitude de adiar tudo, de nonchalance face ao futuro, de despreocupação, muito facilmente irritada com quem lhe lembre responsabilidades (veja-se a velha história do Carnaval), cala muito fundo na anomia em que vivemos. Podem continuar a não querer mudar nada, e não se aborrecerem por nada, enquanto puderem viver remediadamente, como faz uma parte importante da burguesia urbana, entre o Algarve, e Varadero, sem cuidar que os seus filhos vão viver pior, e, se tudo continuar como está, os seus netos vão viver mediocremente. Em Soares têm o candidato ideal.

Por outro lado, Cavaco traz um bem precioso, o que menos abunda na nossa vida política, credibilidade e “confiança”. É aqui que remeto para o meu artigo anterior, infelizmente ainda mais confirmado pelos números entretanto divulgados sobre a crise de confiança entre os investidores. Cavaco acrescenta ao sistema político, Soares diminui, ou, na melhor das hipóteses, não muda nada. Há muitas outras razões para se escolher um ou outro, mas esta é talvez aquela em que a diferença é mais nítida, a escolha é mais escolha. Ou o “fixe” ou o “confiável”.

(Do Público de ontem.)

*
(...) que interessam as escolhas no nosso país? A Isaltino Morais, com um caso de contas suspeitas na Suiça, as sondagens dão-lhe quase maioria absoluta, Fátima Felgueiras, depois de fugir à justiça volta a candidatar-se e ainda tem direito a tempo de antena num canal de televisão, Avelino Torres oferece subornos para votarem nele. Por isso pergunto, que interessam as escolhas no nosso país?

Há uns dias contaram-me esta história: em conversa de amigos, na universidade, um jovem com aspirações políticas virou-se para outro e fez-lhe esta pergunta: "Ouve lá, se eu um dia chegar a me candidatar a um cargo importante como Primeiro Ministro ou Presidente da República, votarias em mim?", ao que o outro respondeu com um sorriso, "Bom, isso iria depender... de qual seria a minha fatia do bolo". Face à resposta, o jovem político rapidamente respondeu "Oh pá, é claro, é claro que arranjava qq coisa". Desta vez o amigo questionado tomou um ar sério e disse "Bom, meu amigo, então nesse caso não votaria em ti de certeza". E o jovem com aspirações políticas ficou mudo e nunca mais questionou aquele seu amigo sobre eleições ou tendências de voto.

A história é real e foi-me contada por um jovem de 21 anos, o amigo questionado. E apesar do orgulho e da surpresa que senti, pois tratava-se do meu irmão mais novo, sei que a resposta utópica que ele deu ao amigo conduz a um beco sem saída. Pelo menos no nosso país. No país em que indícios de corrupção dão maiorias absolutas, no país em que foragidos à justiça aparecem na televisão como se nada tivesse acontecido, no país em que os interesse partidários alimentam os interesses pessoais numa sucessão de favores e contra-favores que agravam e afundam cada vez mais a nossa economia, a nossa educação, a herança que iremos passar às próximas gerações.

Por isso, volto a perguntar, que interessam as escolhas no nosso país?

(Paulo)

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