ABRUPTO

9.9.05


SODOMA E GOMORRA

(Do Público de ontem.)

Que alguma coisa correu muito mal nos primeiros dias no apoio às vítimas do furacão Katrina, é incontestável. Que parte do que correu mal se deve à administração federal do Presidente Bush, também me parece ser incontestável. Que os políticos em democracia têm um preço a pagar por coisas como estas, continua a ser incontestável. Que há muita coisa de errado na sociedade americana, que nem tudo é bom, e que está longe de ser perfeita, também é incontestável. Não é isso que está em causa. Não combato o discurso da culpa com o da desculpa. Enquanto se estiver nessa dança árida da culpa-desculpa, não se vai a lado nenhum.

O que está em causa é outra coisa, é a histeria anti-Bush, e antiamericana, que varreu a comunicação social, na portuguesa com o primarismo habitual, na de muitos outros países, incluindo os EUA, reproduzindo as clivagens da última eleição presidencial. Há hoje uma forte corrente de opinião mundial hostil aos EUA não só enquanto realidade política, mas enquanto realidade sócio-cultural. Pode até em parte ser culpa dos americanos, mas está cá para lavar e durar, e moldará a política europeia de uma forma muito perigosa, em primeiro lugar para os europeus, que dependem dos EUA para se defender e fazem de conta que não sabem isso.

Não é apenas a guerra do Iraque, embora esta seja um irritante muito especial, são muito mais coisas, é a "superpotência", é o sistema económico, é o "imperialismo" cultural de Hollywood, é a globalização, são os McDonalds, são os alimentos geneticamente modificados, é o Deus das notas do dólar, são mil e um pretextos, mil e um ressentimentos, Podem bater com a mão no peito e dizer que não senhor, não são antiamericanos, até gostam dos EUA, da música americana, da cultura americana, das ruas de Nova Iorque, do "espírito" americano, tudo abstraindo do país concreto que existe e não há outro. Nesse país concreto, foi eleito aquele Presidente e eu posso detestá-lo, mas não uso a desgraça dos americanos para obter uma pequena vingança política e ganhar uma maior auto-estima feita do mal alheio.

Este antagonismo antiamericano unifica muitos elementos, é poderoso porque vem da esquerda e da direita, tem raízes tanto no antiamericanismo filho do Kominform, como no antiamericanismo gaullista, que molda o perverso nacionalismo burocrático da União Europeia. Se há pensamento único, é aqui que se encontra nos nossos dias.
Não me venham dizer que o que se viu na zona atingida pelo furacão é o que se costuma ver no Uganda e no Ruanda, porque isso é um completo absurdo que não resiste à mais pequena análise. É puro discurso ideológico transformado em discurso "noticioso", ou então não sabem do que estão a falar, e do que aconteceu no Ruanda, no Uganda, na Serra Leoa, por aí adiante.

Não me venham agora dizer que descobriram a pobreza americana, com grande "surpresa", para fazerem uma catilinária contra o capitalismo selvagem, o "estado mínimo", e o american way of life que não dá aos seus pobres o que o Estado-providência europeu supostamente lhes dá. É um puro discurso ideológico, que, quando vem da esquerda, então é hipocrisia pura, porque o que sempre a esquerda radical disse é que a América era quase só isto.
A pobreza esteve lá sempre, nuns sítios mais, noutros menos. A desigualdade social também. Na América, a pobreza é mais nua e crua, tão inaceitável como em qualquer lado, mas nunca esteve escondida de ninguém por qualquer imagem de perfeição social que só existe inventada na imaginação da propaganda, para ser utilmente negada com falso escândalo.
Insisto, esta surpresa, este espanto, é de todo hipócrita. O retrato da pobreza e violência nos EUA entra-nos em casa todos os dias pelas séries televisivas e pelos filmes, já que agora não se lê literatura, porque, se se lesse, também entrava pelos livros. Por isso, não me venham agora dizer que se "descobriu" a pobreza do Sul e que ela é predominantemente negra. Não viram nenhum filme americano nos últimos anos, não viram nenhuma série televisiva?

Não custaria fazer uma lista dos muitos modos puramente ideológicos como o que aconteceu foi usado para a campanha antiamericana. Começa-se por se esquecer que houve um furacão, e desapareceram as imagens da violência da natureza, passados os primeiros dias, em que elas ainda eram politicamente neutras. O contraste com o tratamento do tsunami é flagrante, e, nem de perto nem de longe, as televisões passaram algo de semelhante à repetição mórbida das ondas que entravam terra dentro.
Os noticiários deram sempre em primeiro lugar, e às vezes em único lugar, a notícia da imputação da culpa, esquecendo quase de imediato o desastre natural, a não ser para reforçar a culpa, transformando a humanidade das vítimas numa abstracção e num libelo acusatório. Foi isso que interessou. O sujeito da desgraça de Nova Orleães foi Bush, não o Katrina e imediatamente se isentou toda e qualquer autoridade local e estadual para só referir a culpa do governo federal, como se os EUA não fossem um país feito de autoridades sobrepostas. Para muitos americanos, a começar pelos "pais fundadores", vinha daí a liberdade, mas talvez não seja tão eficaz como sistema de governo quando há uma catástrofe destas dimensões.

Nos EUA, as vítimas não são verdadeiras vítimas, servem como bandeira para mostrar que o sistema é mau e o Presidente péssimo, que há um contínuo entre a guerra do Iraque e o "cenário de guerra", que mil e um comentários referiram a propósito e despropósito de Nova Orleães. Não me lembro de tal léxico bélico para descrever as zonas devastadas pelo tsunami, que certamente também deveriam parecer zonas de guerra. No tsunami, como a Tailândia, o Sri Lanka e a Indonésia são longe e não são os EUA, a questão da culpa só foi aflorada numa referência inicial sobre se havia ou não aviso possível. Quem é que quer saber da culpa em tão remotas paragens. Aí a culpa é da natureza.

É por isso que há quem veja a "mão de Deus" no Katrina e não são só os fundamentalistas da Al-Qaeda, nem só os do Bible belt. A ideia de uma América e de um Presidente punidos pelo seu orgulho, ou a sua "falta de humildade", por cometer mil e um crimes no mundo e precisar de um revelador catastrófico da sua inerente maldade, está subjacente no modo como esta catástrofe se tornou numa metáfora política. Pior, numa metáfora moral sobre o mal castigado.
Quem conhece a sua Bíblia sabe onde isto vem: no episódio de Sodoma e Gomorra. Deus, na sua absoluta ira, pune as duas cidades viciosas pelo fogo. Os seus anjos não encontraram nenhum homem que não fosse pecador e, depois de Lot estar a salvo mais a sua família, Deus varreu as cidades para todo o sempre.
É uma forma de justiça não é?

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© José Pacheco Pereira
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