É difícíl imaginar noticiário mais sectário do que o que acabou de passar na RTP1 sobre o furacão Katrina. A lista dos adjectivos é um manual do que não se deve fazer em jornalismo e as frases valorativas, sem nada de noticioso, são repetidas ad nauseam. Tudo para transformar o que aconteceu em Nova Orleães num panfleto contra a guerra do Iraque. Não me lembro de um tratamento noticioso de uma catástrofe qualquer, ocorrida fora de Portugal , feito desta maneira puramente acusatória. Só puramente acusatória, para atacar Bush e a guerra.
É evidente que há responsabilidades quando alguma coisa corre mal – com os fogos cá não é suposto ser o mesmo? – mas, mesmo no tratamento dessas responsabilidades, o carácter jornalístico de um noticiário deve ser mantido. Este noticiário seria um interessante case study para as nossas escolas de comunicação social analisarem, mas infelizmente quando um dia se fizer um estudo sobre o equilíbrio noticioso desta matéria, o mal já está feito.
Fica aqui um apelo à Direcção de Informação da RTP para disponibilizar o texto integral do seu noticiário de hoje às 13 horas, incluindo perguntas e respostas dos convidados, para melhor análise e julgamento de todos. Não custa nada, permitia uma análise mais rigorosa e, se eu não tivesse razão, seria o melhor dos desmentidos. Quem não deve não teme. O Abrupto publicá-lo-á na íntegra.
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Há uma incontida satisfação em todos os anti-americanos primários perante as cenas de caos e pilhagem que as televisões nos têm trazido de New Orleans. É música para os seus ouvidos frases como a que o correspondente da CBS/RTP dizia esta manhã - "...cenas como as que assistimos em Nova Orleães são as que se esperariam em países do terceiro mundo, como o Ruanda...". Estas cenas corroboram, aos seus olhos, o seu dogma de estimação de que é o modelo capitalista que provoca as assimetrias sociais que potenciam o conflito que explode em situações-limite entre quem está integrado na sociedade capitalista e quem fica na sua margem.
A dura realidade que se respira nas cidades da América, e todas as cidades importantes são invariavelmente assim, é a de um contraste tremendo entre os centros financeiros de cada downtown e os bairros residenciais dos arredores, onde mora a tal América integrada, essencialmente branca e rica ou remediada, nas suas vivendas com jardim e os seus SUV ou descapotáveis, e os bairros urbanos degradados, onde uma América negra e miserável vai sobrevivendo, alienada e frustrada, pois os pobres são mais frustrados à vista da riqueza.
A América integrada vive de costas voltadas para essa outra América, que Michael Moore caricaturiza nos seus livros e filmes. Que é real, não é ficcionada. Quem a quiser conhecer pode, por exemplo, apanhar uma Greyhound até Baltimore e abrir bem os olhos, ou, se tiver coragem, ir até South Central Los Angeles, que ficou célebre pela revolta que se seguiu ao assassinato de Rodney King, um negro, por polícias do LAPD. Ou ainda, contar os exércitos de sem-abrigo que, todas as noites, dormem nos vãos de escada dos centros financeiros de todas as suas cidades, antónimo dos yuppies de portátil a tiracolo e óculos Ray-Ban que as povoam de dia.
A América não é, de facto, o sal da terra. As imagens televisivas de New Orleans falam por si. Mas será que o seu crescimento económico, exponencial relativamente ao da nossa Europa, esclerosada e estagnada, não vai integrar progressivamente estes alienados. Lembremo-nos dos tempos de MLK e da luta pelos direitos civis, o ponto de partida, porque a história não começa e acaba hoje. Os founding fathers idealizaram uma sociedade apoiada na livre iniciativa e na responsabilidade individual. A Europa continua a acreditar no Estado-Providência como corrector das desigualdades sociais.
Por hoje, a América cresce, a Europa mingua.
Quem irá rir por último?...
(Carlos Costa)
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A RTP disponibiliza, na sua secção multimédia os videos do Telejornal e Jornal da Tarde. Com um dia de atraso, é certo. Pelo que julgo que amanhã se poderá descarregar aquele a que faz referência. E se alguém tiver paciência, transcrever para texto a peça que refere.
Segundo o Público Online de hoje, o nosso PR exprimiu ao seu congénere Americano o seu profundo "assombro e choque" pela catástrofe resultante da passagem do furacão Katrina. A peculiar escolha de palavras do Dr. Sampaio fez-me parar para pensar. Tinha a certeza que já tinha lido esta expressão algures mas não me lembrava onde. Então lembrei-me que uma possível tradução destas palavras para inglês é "shock and awe" e que, curiosamente ou talvez não, foi o nome escolhido para a ofensiva americana no Iraque. Será que o Dr. Sampaio resolveu mandar uma graçola subliminar ao Sr. Bush ou sou eu que estou a ficar um pouco paranóico?
(Rui C., Olean, NY, USA)
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As declarações de Hugo Chavez são miseráveis e foram apresentadas numa peça da RTP esta manhã sob o título de "... mensagens de solideriedade" onde aparecia vários chefes de estado a apresentar a disponibilidade em ajudar - lamentável Mario Rui de Cravalho, reporter de imagem da CBS, citado pela TSF, dizia com toda a "propriedade" que "Nunca se saberá quantos morreram em Nova Orleães" e diz mais etsa coisa extraordinária «Haverá muitos desaparecidos ... e nunca se saberá quantas pessoas morreram exactamente, mas eu posso garantir que foram milhares». Nada disto é jornalismo!
(Filipe Freitas)
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Pode ser sectarismo ou qualquer adjectivo terminado em "ismo", mas a verdade (e aqui refiro-me à imprensa americana, espanhola, francesa, inglesa, brasileira, qualquer uma e das que tive oportunidade de ler e ouvir) é que aquelas imagens de milhares de pessoas ( na sua grande maioria negros, talvez por isso a América rica, branca e religiosa não deu a devida importância ao Katrina) desesperadas por coisas tão básicas, como água para beber e comida, não me saí da cabeça! Como uma potência daquelas, que até previu o tipo de furacão que iria afectar aquela zona da América, que aconselhou os cidadãos a abandonar a cidade de Nova Orleães, não se preveniu para se abastecer de água potável e alimentos para o pós-furacão? Como um país daqueles se encontra agora nas "mãos" do acaso, dádivas e caridade de alguns? Em Portugal disse-se coisas impensáveis ( e o "Abrupto" disse-o!) sobre os incêndios e o nosso modo tão peculiar de tratar catástrofes, mas pergunto: e o que aconteceu com a América, o que dizer daquilo? O Sócrates levou porrada ( e o "Abrupto" calçou as luvas de boxe e bateu até onde quis!) porque estava de férias num Safari, em África, quando Portugal ardia e não se "dignou" a interromper as suas férias ! Mas... E o Bush não foi acusado pela imprensa mais independente ( toda ela) americana de ter reagido tarde e de ter menosprezado o furacão Katrina e de não ter interrompido as férias no seu rancho? Pois então, caros prós e contras americanos o que dizer desta catástrofe natural? E eu até gosto e admiro o engenho e a imaginação americana e estou solidário com eles nesta hora de sofrimento, mas não nos devemos silenciar quando vemos aquela pobre gente da Nova Orleães, descendentes dos escravos do Sul, sem qualquer amparo de um Estado que não olha a meios para gastar em armas e quejandos!
(José Armando Almeida)
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Tenho seguido com atenção os noticiários dos quatro canais televisivos, mas também da CNN, da Skynews e da BBWworld. Hoje mesmo, estive a ler os editoriais e textos relacionados com a tragédia americana no New York Times e, embora possa estar de acordo que determinadas "visões" não serão as mais objectivas, é verdade que tanto Bicudo (RTP), como Costa Ribas (SIC) ou Mário Carvalho (CBS) são unânimes na sua crítica à falta de coordenação e providência da Protecção Civil Americana. Os editoriais e textos dos principais articulistas do NYT são, igualmente, unânimes, na condenação da Protecção Civil (e por extensão do governo federal) dos EUA. De há muito que se sabe que a região da Louisiana é sujeita a furacões periódicos. Um dos articulistas do NYT, citando dados de 2001, escreve que, nesse ano, a Protecção Civil tinha projectado três possíveis grandes catástrofes contra as quais os EUA deviam estar preparados: um ataque terrorista a NY (já aconteceu); um terramoto de grau elevado em São Franscisco e um furacão em Nova Orleães. Destes três, o citado estudo, considerava o furacão de NO como o que traria mais devastação... No mesmo artigo, podia ainda ler-se que os furacões vêm sempre em duas ondas: a primeira, de chuva e vento e a segunda de contestação social. A primeira já passou, a segunda vem aí. Ora o que as imagens de Nova Orleães nos mostram é a população mais pobre (negros, doentes e velhos) que ficaram na cidade por não terem meios para escapar. Será esta constatação uma forma de "anti-americanismo" primário? Não me parece...
(Rui Mota)
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Ainda sobre o Katrina, hoje de manhã, ao ouvir o noticiário da TSF, fiquei boquiaberto quando, com grande destaque, informaram de que soldados recém-chegados do Iraque tinham sido enviados para Nova Orleães, armados, e com ordens para atirar a matar!
Está tudo doido, pensei eu! O objectivo não deveria ser ajudar os sobreviventes? Será que querem abater os desgraçados que ainda estão vivos?
Mais à frente, quase envergonhadamente, lá disseram mais qualquer coisa: não se trata de abater as pessoas esfomeadas que invadem supermercados para se alimentarem, mas sim, os gangs e snipers que percorrem a cidade, a matar, roubar e violar "algumas jovens" (sic).
Quem só tivesse ouvido a primeira parte, o que não diria do Bush e da América?
(Ricardo Peres)
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Valorizo a manifesta apetência que demonstra em análises políticas ou culturais. Mas o mérito social ou jornalístico não lhe reconheço. Bacoca, nefasta e jurássica a sua interpretação do impacto mediático do Katrina... Não encontro em si conhecimento vasto na Teoria da Noticia, na Produção Jornalística ou na Estratégia de Alinhamento. E se deixa contagiar o seu texto de um despeito despudorado por quem não lhe dá voz (Ja basta a SICNotícias), garanto que a RTP não se move por movimentos anti-Bush ou corridas miliaristas contra a Guerra do Iraque. De fino polimento ético, os jornalistas da RTP dão voz. A voz pertence a quem padeceu e sentiu, na pele, a fúria do Katrina. Se as vozes se questionam quanto à falta de imediatez na resposta do governo americano, são essas que se ouvem. Se as vozes se revoltam contra a placidez tonta de Bush, são essas que se ouvem. O que o senhor deseja, vá, confesse!, é o politicamente correcto, a auto-censura, a castração moral. Tenha vergonha... a esquizofrenia política é dos sintomas mais preocupantes. Procure ajuda...