ABRUPTO

30.9.05


POUCO EM COMUM ENTRE 2005 E 1985


É vulgar ver na comunicação social comparações entre a próxima campanha presidencial com a primeira volta da campanha de 1985. Nada de mais superficial e enganador. Quase nada há em comum entre ambas as campanhas, se excluirmos Mário Soares, o que não é pouco. Em 1985, havia um duro confronto entre projectos políticos contraditórios, hoje há apenas um confronto de personalidades, forte entre Alegre e Soares, débil nas candidaturas presenciais como as de Louçã e Jerónimo.

Participei activamente na campanha de 1985, desde quando Soares tinha 8 por cento nas sondagens e tudo parecia perdido. Comecemos exactamente por aí: as más sondagens, que alguns pretendem comparar, entre os 8 por cento de 1985 e os pouco mais de 20 por cento, às vezes menos, de hoje. De novo, repito: incomparável. Em 1985, Soares vinha de uma experiência governamental difícil e controversa, o "bloco central", e fora apanhado por uma volta inesperada da história nas suas aspirações presidenciais.

Tinha contra ele uma governação de austeridade, a que se somou uma crise política no parceiro da coligação, o PSD, com que Soares contava para a maioria presidencial. Soares esperava que a maioria do "bloco central", que governava em parceria com Rui Machete, o pudesse apoiar, tanto mais que o PS não parecia firme no seu apoio. Soares tivera sempre dificuldades com a "esquerdização" do PS, com muita gente a querer ajustar contas pela governação, que acusavam de se ter afastado das "conquistas de Abril". Ao mesmo tempo era pressionado por uma ala esquerda que se revia em Zenha e que não perdoara o distanciamento que Soares tivera do apoio do partido a Eanes nas eleições anteriores. Eanes, o "eanismo" e o PRD eram uma perturbação nova no sistema político, a única que verdadeiramente colocou em causa a hegemonia alternativa do PS e do PSD, e o "eanismo" era veementemente anti-soarista e vice-versa.

Soares percebeu que não ia ter o apoio do PSD, onde a novel estrela em ascensão, Cavaco, tinha ganho força ao pôr em causa o "bloco central" em matéria presidencial, apoiando Freitas do Amaral. Soares, para travar o desgaste, bloqueou então todas as reformas do Governo, como a sempre adiada legislação sobre o arrendamento, que ainda irritariam mais o PS, mas não conseguiu estancar o confronto com os vários "socialismos" órfãos do PREC. Rejeitado por Cavaco, virou-se para defrontar todos os candidatos nas "primárias da esquerda", ou seja, Zenha e Pintasilgo. Ao defrontá-los, defrontava também uma parte importante do PS.

Neste confronto, que alguns pensam semelhante ao actual, nada é comparável. Em 1985, afrontavam-se projectos políticos antagónicos, ferozmente competitivos, mais do que personalidades. Hoje o embate é mais entre personalidades, e menos entre projectos, porque Soares, Alegre, Louçã e Jerónimo não têm muitas diferenças na visão do mundo. Em 1985, ainda a campanha era feita essencialmente fora da televisão (que favorece o "protagonismo") e o 25 de Abril e o PREC estavam muito vivos na memória, rasgando o tecido político. Hoje é o contrário.

Em 1985, os dois candidatos Zenha e Pintasilgo eram os últimos representantes de projectos políticos vindos directamente do PREC, e Soares, da resistência ao PREC. Dez anos depois de 1975, era uma fase da vida política portuguesa que estava a terminar numa espécie de "luta final". Pintasilgo representava o basismo, que agregara as sobrevivências do MES e muitos outros nostálgicos do "poder popular", e uma esquerda radical independente que tinha então um papel muito importante na comunicação social, à volta do semanário O Jornal, e que partilhava influências com o PRD. Zenha era um candidato ainda mais complicado, recebendo o apoio simultâneo do PRD e do PCP, misturando a resistência de um certo "socialismo militar", justicialista e moralista, à normalização democrática, com uma estratégia comunista de usar o PRD para enfraquecer o PS. O PCP desejava que o PRD igualizasse os partidos num grupo de cinco, favorecendo a fragmentação do poder, quebrando o PS. Soares era para todos o adversário a abater, que representava a "social-democratização", que tirara da gaveta para lá pôr o socialismo.

Desde o 25 de Novembro até finais de 1985, todos os grandes impasses de um estado feito pelas "conquistas da revolução", construído institucionalmente por uma Constituição equívoca e ambígua, foram o pano de fundo do combate entre os que defendiam a "ruptura" (como Sá Carneiro) e as mil e uma variantes de "socialismo" ainda muito vivas e pujantes. Convém lembrar que a Constituição ainda tinha fortes resquícios do poder militar, que a parte económica da Constituição consagrava as nacionalizações, a reforma agrária e o controlo operário, e a Europa ainda não trouxera fundos e soberania partilhada. Tudo isto estava por resolver após o fracasso de duas experiências governativas "centrais", a da AD e a do "bloco central".
Por isso, a primeira volta de 1985 foi bem mais importante do que a segunda volta de 1986, em que muitos equívocos do passado voltaram de novo, com Soares a ir buscar o "antifascismo" para derrotar Freitas. E esses equívocos só não bloquearam outra vez o fim das "conquistas da revolução" porque apareceu Cavaco, o segundo acto da primeira volta das presidenciais. Soares, fresco no seu antieanismo, fez uma primeira presidência, marcada pela recusa do Governo PS-PRD que lhe queriam impor, depois da moção de censura que tinha derrubado o governo minoritário (28 por cento teve o PSD nas urnas e ganhou, sinal da fragmentação eleitoral do sistema partidário). Cavaco, obtendo a maioria absoluta, ajudou Soares a fazer uma "magistratura de influência" no primeiro mandato, que ele iria abandonar a favor do "direito à indignação" no segundo, tornando o intervencionismo do general Eanes uma brincadeira, comparado com o dele próprio.

Hoje, nada que tenha a ver com estes confrontos existe entre as candidaturas de Soares, Alegre, Louçã e Jerónimo. Estes dois últimos têm candidaturas puramente tribunícias, destinadas a garantir voz aos seus partidos, mas bastante indiferentes aos resultados finais. Ninguém teme qualquer cataclismo pela vitória de Cavaco, ou pela derrota de Soares. No PCP, há mesmo uma velha animosidade contra Soares (que não existe no BE), com raízes não só políticas como sociais, pelo que muita gente ficará "vingada" se Soares perder. Nenhum movimento genuíno existe para concentrar os votos numa segunda volta em Mário Soares, embora a facilidade de dramatização do dualismo político o possa favorecer.

Mas que têm os concorrentes de Soares a criticar-lhe, ou vice-versa? Em todas as questões de fundo, em matéria de política externa (Iraque, antiamericanismo, antiglobalização, antiblairismo, política face ao terrorismo, etc.), Soares ultrapassa em radicalismo mesmo o BE e, em política interna, Soares de há muito propugna por versões simplistas do cânone antiglobalizador de Porto Alegre, irrealistas até ao limite. Dir-me-ão que isso não é importante porque o Presidente não governa. Verdade, mas o que ele pensa da governação é o pano de fundo da sua função presidencial e convém não apostar que um utopista radical possa avalizar uma política que acha "neoliberal", ou seja, demoníaca.

O caso de Alegre também pouco tem a ver com ideias e programas, como se verá na campanha. Se João Soares não fosse candidato na disputa interna do PS, Mário Soares estaria com Alegre, que nunca atacou nesses dias, embora tenha atacado Sócrates. Retórica por retórica, ambos são bons, Soares tem mais experiência e intuição política, Alegre mais "honestidade", "princípios" e "ética republicana". Mas o confronto entre ambos só na aparência é semelhante ao de Zenha com Soares, porque falta a Alegre qualquer projecto consistente que seja antagónico com o de Soares. Diferem de clientelas no PS? Não chega. Na prática, ambos pairam um pouco por cima da realidade do próprio PS, onde o "socratismo" é uma coisa muito diferente. Sócrates está a fazer um rejuvenescimento da rede de interesses dentro do PS e, desse ponto de vista, o grupo à volta de Soares está a perder peso e influência, o que foi aliás uma das motivações de Soares para concorrer.

Talvez por isso, um confronto Soares-Sócrates tivesse muito mais sentido do que Soares-Alegre. Na verdade, ele existe e está lá disfarçado. O PS que está no poder não está representado nesta campanha presidencial, que, logicamente, Sócrates desvaloriza. Não surpreende que seja assim, porque foi exactamente por essa desvalorização que Soares o criticou.

Em 1985, nas "primárias", havia espadas pelo ar, desembainhadas, na rua, fora do palco, na praça principal, com fúria e vigor; em 2005, é teatro de câmara, veneziano, interior, envenenado, um jogo com muitas sombras, de egos cansados e pouco subtis. Em 2005, havia outras "primárias" possíveis, essas sim mais parecidas com as de 1985, mas seriam do outro lado do espelho. Seriam as que oporiam o projecto de Cavaco Silva com o de Portas e Lopes, como em 1985, "primárias" opondo projectos de conteúdo distinto, representando espaços políticos e interesses sociais distintos, que resolveriam alguns mal-entendidos sociais e políticos que ficaram em suspensão desde a fundação do Independente até ao consulado de Santana Lopes-Portas. Mas duvido que tal se verifique, dado que os eleitores este ano já começaram a colocar as coisas em ordem, provocando a falta de comparência dos que diziam "nunca desistir".

(No Público.)

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© José Pacheco Pereira
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