ABRUPTO

1.9.05


MÁRIO SOARES, JESUS, FINANÇAS E BIBLIOTECAS



"A economia é extremamente importante, ninguém o ignora. É uma das chaves do nosso futuro colectivo. Mas a economia está ao serviço das pessoas e não as pessoas da economia. (...) Depois, como escreveu Fernando Pessoa: "Mais do que isto/é Jesus Cristo/que não sabia nada de finanças/nem consta que tivesse biblioteca""

Todo o discurso de apresentação da candidatura de Mário Soares é um exercício defensivo de denegação. Já vários o notaram, não vale a pena repeti-lo. Mas há uma frase muito significativa do dilema da sua candidatura, que pronuncia contra Cavaco, mas que revela o aspecto mais frágil da sua acção como governante, e do seu pensamento presidencial no que diz respeito à governação.

Mário Soares não é o Jesus de Pessoa – que Pessoa certamente não quereria como Presidente, e que “não sabe de finanças” e “não tem biblioteca”. Ora Soares “não sabe de finanças”, mas tem biblioteca, o que significa que a sua ignorância de economia e finanças, proclamada face ao seu adversário, tem outro sentido político: é que o problema não é Soares não ser professor de economia, mas não dar importância real à economia na crise. Na verdade nem sequer é à “economia” abstracta, porque a ela faz lip service habitual. É à economia real, ao capitalismo, ao mercado, tal como ele funciona, e à economia portuguesa tal como é. E aqui há ideologia, há socialismo, há estatismo, e há, acima de tudo, jacobinismo. E há um preço enorme que pagamos por estas ideias. Esse preço é a crise em que vivemos.

O discurso de Soares é retórico e jacobino, acredita no Estado e no exercício do poder político no estado, no governo e no partido – aliás é só por ver este poder ameaçado, ou limitado, que se candidata – e este sobrepõe-se, ou é ontologicamente indiferente à economia, que é vista como uma perturbação que interesses, em última instância egoístas, causam na governação iluminista e iluminada pela Razão.

É por pensar assim que muito do país que existe e do qual os portugueses retiram as razões para o seu pessimismo foi feito por ele e pelo PS. A sua candidatura é a promessa de que não aprendeu nada do desastre que foi em Portugal o jacobinismo do PS na manutenção do estado socialista híbrido gerado pelo PCP em 1975. Com a ajuda às vezes, só às vezes, do PSD e do PP.

O problema não é Soares não saber de economia, é que ao se vangloriar de não o saber, está a dizer-nos que a economia não é um factor ou um revelador fundamental na crise . Aliás não custa perceber que se Soares fosse PM não daria prioridade ao controlo do défice (sim Soares pronunciou-se sobre a governação e não vi ainda ninguém protestar sobre isso). Frases como esta – “a economia está ao serviço das pessoas e não as pessoas da economia” – em Portugal não significam outra coisa. Não será dele que virá qualquer apoio ao governo para reformas difíceis, bem pelo contrário. Às ideias jacobinas como as de Soares devemos muito da crise, não se espera que delas venha a solução.

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Ignoro onde é que Mário Soares foi beber o dilema da economia. Se não se serviu desta fonte Autisme-Economie.org por lá andará. Concordo que sem economia laboriosa não é possível avanços audaciosos. Mas a verdade é que as "fábricas" produtoras e reprodutoras de economistas ainda não produziram o milagre "português". Daí a revolta dos estudantes franceses de economia pretenderem uma reforma do respectivo ensino e considerarem que há uma vivência de economia autista. Dito de outra forma, o ensino seria totalmente absurdo por não responder aos objectivos que o ramo se propõe realizar, e de que é paradigmático o exemplo português. Se se atribuir a culpa aos políticos por vetarem o trabalho dos economistas, então estamos em presença de uma servidão voluntária que alimenta o autismo economicista, em detrimento do papel que a estes competiria. Daí as permanentes saídas de ministros que não se sujeitam a nenhuma servidão, e os que se sujeitam falham o seu status, e comprometem o futuro deste país. Enfim, como refere Foucault: "Est-il pour autant que nous ne connaissiond d'autre usage de la parole que celui du commentaire? Ce dernier, , à vrai dire, interroge le discours sur ce qu'il dit et a voulu dire; il cherche à faire surgir ce douple fond de la parole, où elle se retrove en une identité à elle-même qu'on suppose de sa vérité; il s'agit, en énonçant ce qui a été dit, de redire ce qui n'a jamais été prononcé" (Naissance de la clinique, puf, Paris, 1963, p. XII).

(João Boaventura)
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Confesso que não segui com muita atenção (e concentração) a sessão de apresentação da candidatura e o discurso oficial. Mas, pelo que vi nos resumos dos telejornais, tudo aquilo (discurso, ideias, sessão) me fez lembrar o que de pior existia nas sessões da velha oposição republicana nos anos 50 do século passado (mal sabia ler mas tive acesso mais tarde). E, meu caro JPP, o problema nem sequer se centra na Economia, como você, apoiante confesso do meu ex-prof. Cavaco Silva, diz. Não é esse o Key Issue. Peço-lhe desculpa mas, em certa medida, é passar ao lado do essencial, apesar de ela (Economia) ser demasiado desvalorizada no discurso de Soares com frases, mtº aplaudidas (claro!), como "a Economia não é uma ciência exacta".... "serve os homens" e outras vulgaridades semelhantes. O problema é político e centra-se numa frase de Soares ("unir todos os portugueses") que é a antítese se tudo aquilo que o país precisa, neste momento. Eu sei que a frase é retórica, mas é, também, reveladora de um programa político que revela um desfazamento total da realidade portuguesa, pois o que o país espera e precisa é exactamente do contrário: uma forte ruptura política (que só se pode fazer contra uma parte dos portugueses) que permita, então, a aplicação de um programa de modernização da sociedade a vários níveis, incluindo o económico. Isto é exactamente o contrário do que se passava em 1985, quando a questão era definir como se poderia caminhar para a democracia plena e para a integração europeia: através de uma ruptura "crispada" esquerda/direita ou unindo tudo aquio que se reconhecia nesse objectivo- ou não se reconhecendo (PCP) veria nesta estratégia um "mal menor". De que modo pode o Presidente patrocinar essa ruptura? - se é que pode no quadro constitucional actual. Essa é, quanto a mim, a questão essencial, e como não me parece que as actuais funções presidenciais lhe possam dar resposta (ou para isso contribuir decisivamente) penso que se está a valorizar demasiado essa eleição desviando as atenções daquilo que, isso sim, é essencial: o trabalho e actuação do governo.

(João Cília)

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