ABRUPTO

10.9.05


FANTASMAS



Há fantasmas. Há mesmo qualquer coisa parecida com fantasmas, brumas, visões, passagens. Reinos. Sombras. Coisas que passam.

Esta fotografia vinha no meio de uma vida que foi parar ao lixo. “Sabe, eu vivo daquilo que os outros não querem”, disse-me o homem do papel, quando trazia mais uma cesta da vindima com os livros. Podiam ser uvas, podia ser milho, podia ser lixo. Na pilha que ficou, onde está uma vida, estão cadernos escolares, diplomas, certidões, multas, cartas, agendas, fotografias, recortes de jornais. Uma vida: livros, cadernos escolares, diplomas, certidões, cartas, agendas, fotografias, recortes de jornais. Foi o que ele deixou. Bíblias anotadas, livros de alemão, livros de mecânica, uma ou outra revista com mulheres nuas, erótica dos anos sessenta, alemãs. Uma foto vestida de polícia de viação, a antiga PVT, uma mota. Daí a mecânica. Postais, um com a irmã Lúcia. Cartas, “minha mãe coma fruta que lhe faz bem”, bilhetes, a “encomenda vai na camioneta”. E fotos, a desaparecer. Como esta, película Agfa, mais nada. Quem eram, quem tirou a fotografia a estas sombras, uns rapazes pelo meio da rua, ainda não devia haver muitos carros, uma rua de paralelípedos, sinal de mão de obra barata. As casas de uma vila rica, do interior, quando ainda havia agricultura. Fragmentos, como sempre, visões, fantasmas.

Guardarei a foto. Diz demasiado. Os mortos falam.

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Não é uma vila rica, é Évora.
Trata-se da, hoje chamada, Rua de República que liga o Rossio à Praça do Giraldo. A fotografia não é assim tão antiga, pois reconhece-se nela o edifício da antiga "Setubalense" que é dos anos cinquenta. Na fachada oposta, há um quarteirão e um jardim oitocentistas no local onde, no século XVI, se edificava o palácio real.

(Luís Carmelo)
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O Luís tem razão, é Évora. Mas engana-se quando diz que não foi há muito tempo. A cidade mudou mais em 50 anos que em duzentos. A fotografia é também o fantasma de uma cidade misteriosa e silenciosa, com raríssimo trânsito. Pela Rua da República ia eu para casa dos meus avós. Por ela subiam e desciam os moços e mulheres de mandados às lojas da Praça do Giraldo. As senhoras não iam às ccompras. Mandavam recados escritos às lojas do que queriam , os lojistas, detrás dos seus balcões enviavam as amostras dos tecidos, as linhas, os elásticos, os botões. depois os moços ou as mulheres voltavam a subir a rua com a escolha escrita e desciam-na de novo com o mandado feito. O telefone apareceu em Évora nos anos 50. Eu treinei a minha leitura nas listas de telefones da minha avó.
Foi há muito tempo.

(Maria José Metello de Seixas)
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Reconheci de imediato a foto que publicou. Foi onde cheguei a Évora de camioneta, nos final dos anos 70, para onde fora estudar. Aí viria a chegar muitas vezes durante dois anos. No princípio dos anos 80 ainda era exactamente assim. Quanto às casas nessa zona da cidade, são quase todas senhoriais, incluindo, não longe dali, a casa da família Espanca, isso mesmo me contou pessoalmente Túlio Espanca, parente de Florbela. Uns metros mais acima, do outro lado da rua, fica a Igreja de S. Francisco, com o seu Anjo das Misericórdias e esse estranho local de meditação conhecido por Capela dos Ossos.

(Octávio Gameiro)

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© José Pacheco Pereira
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