ABRUPTO

2.6.05


APRENDENDO COM EÇA DE QUEIRÓS

"O jornal estende sobre o mundo as suas duas folhas, salpicadas de preto, como aquelas duas asas com que os iconografistas do século XV representavam a Luxúria ou a Gula: e o mundo todo se arremessa para o jornal, se quer agachar sob as duas asas que o levem à gloríola, lhe espalhem o nome pelo ar sonoro. E é por essa gloríola que os homens se perdem, e as mulheres se aviltam, e os políticos desmancham a ordem do Estado, e os artistas rebolam na extravagância estética, e os sábios alardeiam teorias mirabolantes, e de todos os cantos, em todos os géneros, surge a horda ululante dos charlatães... (Como me vim tornando altiloquente e roncante!... Mas é a verdade, meu Bento! Vê quantos preferem ser injuriados a serem ignorados! (Homenzinhos de letras, poetisas, dentistas, etc.) O próprio mal apetece sofregamente as sete linhas que o maldizem. Para aparecerem no jornal, há assassinos que assassinam. Até o velho instinto da conservação cede ao novo instinto da notoriedade: e existe tal maganão, que ante um funeral convertido em apoteose pela abundância das coroas, dos coches e dos prantos oratórios, lambe os beiços, pensativo, e deseja ser o morto.

Neste Verão, uma manhã, muito cedo, entrei numa taverna de Montmartre a comprar fósforos. Rente ao balcão de zinco, diante de dois copos de vinho branco, um meliante, que pelas ventas chatas, o bigode hirsuto e pendente, o barrete de pele de lontra, parecia (e era) um huno, um sobrevivente das hordas de Alarico, – gritava triunfalmente para outro vadio imberbe e lívido, a quem arremessara um jornal: É verdade, em todas as letras, o meu nome todo! Na segunda coluna, logo em cima, onde diz: «Ontem um infame e ignóbil bandido...» Sou eu! O nome todo! E espalhou lentamente em redor um olhar que triunfava. Eis aí, como agora se diz tão alambicadamente, um «estado de alma»! "

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© José Pacheco Pereira
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