ABRUPTO

1.6.05


APRENDENDO COM EÇA DE QUEIRÓS

Este é o primeiro pecado, bem negro. Considera agora outro, mais negro. Pelo jornal, e pela reportagem que será a sua função e a sua força, tu desenvolverás, no teu tempo e na tua terra, todos os males da vaidade! A reportagem, bem sei, é uma útil abastecedora da história. Decerto importou saber se era adunco, ou chato o nariz de Cleópatra, pois que do feitio desse nariz dependeram, durante algum tempo, de Filipe a Actium, os destinos do universo. E quantos mais detalhes a esfuracadora bisbilhotice dos repórteres revelar sobre o sr. Renan, e os seus móveis, e a sua roupa branca, tantos mais elementos positivos possuirá o século XX: para reconstruir com segurança a personalidade do autor das «Origens do Cristianismo», e, através dela, compreender a obra. Mas, como a reportagem hoje se exerce, menos sobre os que influem nos negócios do mundo ou nas direcções do pensamento, do que, como diz a Bíblia, sobre toda a «sorte e condições de gente vã», desde os jóqueis até aos assassinos, a sua indiscriminada publicidade concorre pouco para a documentação da história, e muito, prodigiosamente, escandalosamente, para a propagação das vaidades!

O jornal. é com efeito o fole incansável que assopra a vaidade humana, lhe irrita e lhe espalha a chama. De todos os tempos é ela, a vaidade do homem! já sobre ela gemeu o gemebundo Salomão, e por ela se perdeu Alcibíades, talvez o 100 maior dos Gregos. Incontestavelmente, porém, meu Bento, nunca a vaidade foi, como no nosso danado século XIX, o motor ofegante do pensamento e da conduta. Nestes estados de civilização, ruidosos e ocos, tudo deriva da vaidade, tudo tende à vaidade. E a forma nova da vaidade para o civilizado consiste em ter o seu rico nome impresso no jornal, a sua rica pessoa comentada no jornal! «Vir no jornal!» eis hoje a impaciente aspiração e a recompensa suprema! Nos regimes aristocráticos o esforço era obter, se não já o favor, ao menos o sorriso do Príncipe. Nas nossas democracias a ânsia da maioria dos mortais é alcançar em sete linhas o louvor do jornal. Para se conquistarem essas sete linhas benditas, os homens praticam todas as acções – mesmo as boas. Mesmo as boas, meu Bento!

O «nosso generoso amigo Z...» só manda os cem mil réis à creche, para que a gazeta exalte os cem mil réis de Z..., nosso amigo generoso. Nem é mesmo necessário que as sete linhas contenham muito mel e muito incenso: basta que ponham o nome em evidência, bem negro, nessa tinta cujo brilho é mais apetecido que o vê lho nimbo de ouro do tempo das santidades. E não há classe que não ande devorada por esta fome mórbida do reclamo. Ela é tão roedora nos seres de exterioridade e de mundanidade, como naqueles que só pareciam amar na vida, como a sua forma melhor, a quietação e o silêncio...

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