ABRUPTO

20.5.05


OS LIVROS DA SÁBADO

GOSTAR DE PORTUGAL

Gostar de Portugal de uma forma escorreita, escrever sobre Portugal de muito próximo, ter de Portugal uma intimidade feita de andar a pé pelas suas terras, observar, desenhar, anotar foi o que fez durante a sua vida Fernando Galhano. O livro Páginas de Cultura e Arte, antologia dos artigos e desenhos publicados no Comércio do Porto nos anos sessenta e editados pela Caixotim, é um excelente retrato desse gosto, tão raro entre nós. O que impressiona nos textos e desenhos de Fernando Galhano é a sua elegância e leveza estética, o fluir do olhar com rigor sobre coisas que já não iremos mais ver: uma rapariga a moer o cereal para preparar umas papas numa aldeia serrana, uma cozinha rural, uma trovoada no rio Douro, um rio que quem o conhece tem medo dele, fragmentos de um Portugal que é hoje o “país estrangeiro” do nosso passado.

Galhano fazia parte de um pequeno grupo de portugueses que transformaram esse gosto em estudo, em literatura e arte, e que sem eles, não existiria para nós. O salazarismo pretendeu apropriar-se desta movimento de recolha das coisas pátrias para o elevar a uma apologia do mundo rural e marítimo, que pouco mais era do que uma apologia da pobreza. Mas esta geração de homens – Ernesto Veiga de Oliveira, Benjamim Pereira, Jorge Dias, Orlando Ribeiro, a equipa de Keil do Amaral coligiu a Arquitectura Popular Portuguesa, Lopes Graça e Giacometti, e alguns outros - sobreviveu a essa apropriação ideológica do seu trabalho.

Politicamente eram muito diferentes, havia comunistas e gente próxima do regime salazarista, mas olhavam para Portugal de uma forma que podemos reconhecer não só como nossa, mas também como nos fazendo falta hoje, quando a destruição acelerada da paisagem e do habitat já está em grande parte consumada. Um Portugal que já estava a acabar no seu tempo foi assim salvo in extremis para a nossa memória. Eles ouviram por nós os últimos velhos que ainda cantavam uma última canção tradicional antes da rádio e televisão impregnarem os ouvidos, fotografaram as velhas casas, palheiros e espigueiros, os utensílios de trabalho, recolheram as lendas, os provérbios, as práticas culturais e de trabalho de lavradores, pastores e pescadores, caminharam por caminhos que nós, criminosamente, estamos a fazer com que vão dar a parte nenhuma.

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Escrevo-lhe para retificar um nome saído neste seu post, a saber, Benjamim Pereira era e é, por que está vivo e de boa saúde, um etnógrafo do famigerado e brilhante grupo de Jorge Dias, e não Benjamim Ribeiro, como consta.[corrigido] Recomendo o livro Etnografias Portuguesas (1870-1970). Cultura Popular e Identidade Nacional de João Leal publicado na colecção da Dom Quixote, Portugal de Perto, que aborda o trabalho deste grupo de etnógrafos bem como o tema da arquitectura desde Raul Lino ao trabalho de Keil do Amaral, entre outros assuntos.

(Sérgio Alves)

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© José Pacheco Pereira
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