ABRUPTO

23.5.05


FUTEBOLÂNDIA

Estamos assim, pobretes mas alegretes. Arruaceiros e épicos. A televisão pública dá o exemplo: depois de vinte minutos de não-notícia (a parte informativa do futebol não dava num país civilizado mais de dois ou três minutos), lá se lembrou que havia uma coisa chamada défice. Inebriados pela habituação, os telespectadores devem ter ido a correr para a SIC e a TVI. A TVI titulava a "Festa dos Heróis" e ao lado a palavra "balneário". Os "heróis", já não me lembra o que significava esta palavra antes da instauração do regime da Futebolândia, eram uns homens em trajos menores aos saltos e muita intimidade corporal. A SIC passou a falar do défice dez minutos depois, a TVI ainda estava aos saltos.

*
Hoje de manhã, quando vinha trabalhar – a ouvir o rádio do carro, como habitualmente - dei por mim a matutar nas duas grandes notícias, o défice e a bola.

E pensava: «Este maravilhoso entusiasmo, esta força emotiva, este imenso sentido de pertença, este espírito de sacrifício (gente que anda centenas de quilómetros, que gasta sem contar, que fica a pé até às 4 da manhã, para ver os artistas) não poderiam ser atrelados à carroça desconjuntada da nossa economia, do “Estado a que isto chegou”, e de qualquer forma, ao serviço de uma causa de recuperação económica e de progresso moral e material da Pátria?»

(Sou antiquado, ainda penso Pátria, recuso-me a ser apenas “deste país”)

No mesmo fôlego, a Rádio informou-me dos passeios cobertos de lixo, de latas de cerveja vazias, de garrafas de cerveja partidas, de gente que não iria trabalhar ou à escola, porque “tinha valido a pena”…

E de repente, tive a minha resposta: Não, não é possível…

Toda essa força é apenas uma manifestação tribal, uma adoração e um sacrifício ao totem, ao que dá sentido ao que não tem sentido, à incapacidade e à impotência.

Não é enformada por um resquício de racionalismo, não há possibilidade de lhe dar uma direcção e um significado outro, que não o da emergência (temporária?) vitoriosa do primevo que existe em todos nós, sobre o verniz de civilização que geralmente nos cobre.

Séculos de filosofia e estudo, pré-socráticos, helenistas, aristotélicos, hebraicos, muçulmanos, medievos, renascentistas, cartesianos… por aí fora, até ontem à noite. Lixo tão inútil, como as garrafas de cerveja partidas pelos passeios… E viva o Benfica!

(Luis)

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© José Pacheco Pereira
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