ABRUPTO

5.5.05


DOIS ANOS

SCRITTI VENETI: A CIDADE-ALEPH



Uma das mais célebres e dramáticas chegadas a Veneza abre o filme de Visconti Morte em Veneza, a partir da novela de Thomas Mann. A personagem principal do livro, Gustav von Aschenbach, um escritor e um esteta, moldado a partir da figura do compositor Gustav Mahler, chega a uma cidade que está doente, presa numa das suas febres periódicas, que atravessaram a sua história muitas vezes. Chega de barco. Thomas Mann explica porque se deve sempre chegar a Veneza por mar:

“Ele via, este cais tão espantoso, a magnifica composição desta arquitectura fantástica que a República de Veneza oferecia aos olhares respeitosos dos navegantes que se aproximavam: o esplendor ligeiro do Palácio, e da Ponte dos Suspiros, as colunas com o Leão e o Santo, sobre o cais o flanco do templo feérico que se anunciava em todo o seu esplendor, a perspectiva abrindo-se sobre o grande portal, com o seu relógio gigantesco e, olhando tudo isto, ele pensou que chegar a Veneza por terra era o mesmo que entrar num palácio pela porta de serviço e que nunca se devia, na mais improvável das cidades, chegar de outro modo que não fosse aquele que estava a usar, um barco, vindo do mar largo.”

Aschenbach ia para o Lido, para o Grand Hotel des Bains, que ainda existe, mas quer passar em frente da Praça de S. Marcos, para a ver do lado do mar, por entre as ilhas envoltas em bruma. É um alemão que chega, que lera certamente os Epigramas que Goethe escrevera sob inspiração veneziana, “aqui tudo é vida e actividade, não ordem e disciplina”. Ali não havia a “honestidade alemã”, ali havia perigos iminentes, como se vai ver. Aschenbach pensava que ultrapassara os sentidos, que atingira um estado de perfeição estética que estava para lá dos sentimentos vulgares . Mas escolheu mal a cidade para se testar. Nela vai encontrar, contra a sua vontade, a última paixão. E acaba por morrer em Veneza, uma cidade onde se morre sozinho, como se morre sempre, mas como se essa morte pertencesse àquilo a que chamamos “cultura”.

Nenhuma cidade da Europa tem este tipo de fascínio decadente, a força cultural da história em estado bruto de tão sofisticada. Apenas Istambul poderia rivalizar com Veneza, se não fosse hoje uma cidade turca, demasiado turca para ter memórias contraditórias do seu passado. O espírito da cidade, o espírito do lugar, o heimatgeist, caro aos alemães, transpira das águas, das paredes. O tapete que cobre as ruas é feito de palavras. Palavras sobre palavras, sobre palavras. Palavras venezianas como as de Goldoni ou Casanova, mas palavras em todas as outras línguas do mundo. Goethe, Byron, Ruskin, Proust, Pound, Mann, Brodsky, numa espessura que constitui por si só a história do mundo, do nosso mundo. Se somarmos as imagens e os volumes dos edifícios e das esculturas, desde os cavalos perfeitos trazidos de Bizâncio, até às histórias de Corto Maltese, também tudo é coberto por imagens. Imagens sobre imagens, sobre imagens. E sons. De Vivaldi a Wagner ou Mahler, sons sobre sons sobre sons. Esta é um terra de excessos, como Aschenbach percebeu, para seu mal, “sem honestidade alemã”, mas com uma espessura mórbida. Uma cidade-aleph onde está tudo.


Do texto "Olhares de Veneza", publicado na revista Volta ao Mundo.Uma parte do Abrupto foi escrita de Veneza.

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© José Pacheco Pereira
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