ABRUPTO

6.5.05


DOIS ANOS



NOTAS SOBRE AS FORMAS DE SENSIBILIDADE ANTIGAS


De uma carta do Realista Antigo:

“Antigamente dava-se valor ao que era construído lentamente, à experiência, ao estudo porfiado, ao silêncio e ao rigor do pensar, à moderação na vida, à prudência na política, ao carpe diem, à áurea mediocritas. O pathos era para o teatro. Sérios legisladores como Sólon discutiam como é que é possível governar uma cidade a quem se alimenta de “mentiras” no palco. Os gregos não gostavam da impetuosidade, da hubris, na qual viam uma qualquer vingança divina. Os romanos gostavam ainda menos e fizeram todo o seu império assente na velocidade das legiões, na soldadesca profissional, e no betão da época, pontes e calçadas, e não no princípio da “inter-pessoalidade” como se diz agora. A força contava, os estados de alma, não. Não havia “diálogo” para medir tudo. Valia-se o que se valia. E sabia-se o que se valia ou não. Se não se sabia alguém nos lembrava, à força.

Compreende-se: era um mundo violento, duro, onde a vida valia pouco e os prazeres tinham que ser intensos para durarem. A vida incluía a guerra para os homens como regra. Não se chegava aos vinte e cinco anos sem estar várias vezes em risco de vida. Garanto-vos que isto muda muito. Os pobres morriam brevemente, com a idade de Cristo, os ricos tinham sempre um punhal ao dobrar da esquina ao favor ou desfavor do imperador.

(…)

Podes sempre dizer que é a velhice. Os velhos falam sempre assim do mundo. Mas vê tu, meu amigo, que tudo isto que te escrevo tem apenas uma razão: a maior das ilusões é pensar que a violência do mundo antigo ficou no mundo antigo e hoje, nas cidades confortáveis, só existe um “problema de segurança” e não o vento maligno da guerra. Que ganhamos muito ficando prosaicos e débeis. Talvez valha por isso voltar para traz, para os modos de sensibilidade antigos, e perceber a sua necessidade. Tudo mudou menos a crueldade. E sobra muita, quase toda. Nós não vemos porque houve uma ou duas gerações em paz, mas está lá.

(…)

Antigamente, dava-se valor a separar o mundo de Apolo do de Dionísio, coisa que desde que o dr. Freud nos entendeu doutra maneira, e desde que os romancistas russos e os dramaturgos nórdicos, começaram a descobrir o “individuo” (primeiro a “menina Júlia”, ou a Anna Karenina e só depois o Vronski) passou a ser tida como possível. Agora o cânone é que tudo deve vir sempre misturado e Dionísio é o verdadeiro senhor. Apolo está sentado sempre em cima de Dionísio e, mal este se mexe, a apolínea virtude e o Logos caiem por terra. Deixou de se poder ser um severo Catão num dia e noutro um perverso Marcial, tem que se ser sempre um Catão que é verdadeiramente um Marcial. Pobres romanos que deixamos de perceber há muito!

(…)

Agora somos todos românticos, à nossa medida, sucessiva. Somos também ligeiros, muito ligeiros, demasiado ligeiros, light como a Coca Cola, acreditamos na monda química dos pensamentos, nas artes leves como o cinema e a música, que se ministram para plateias sentadas, e gostamos que não nos macem muito com lembranças e histórias, obrigações e deveres. Tudo isso passou a arrogância, um sentimento desprezível porque nos mede e nós não queremos ser medidos. Ficou tudo descartável e só a mudança conta. A pieguice ganhou a aura do sentimento mais forte.

(…)"

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© José Pacheco Pereira
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