ABRUPTO

5.5.05


DOIS ANOS


NOTAS CHEKOVIANAS


Os maridos, meu caro, só matam nas novelas ou nos trópicos, onde fervilham paixões africanas! Quanto a nós bastam-nos os horrores dos roubos por arrombamento ou das falsificações de identidade”. Um Drama na Caça (Colecção Vampiro, nº684, pág. 11).

Um Drama na Caça, foi publicado em folhetins no ano de 1884-1885, sendo das primeiras obras de Anton Tcheckov e é considerado o seu único romance, embora creia que “novela” é o termo apropriado para a obra. Para quem conhece e aprecia os contos de Tcheckov, esta novela também causa surpresa.

As simples, mas precisas pinceladas, ou talvez seja mais preciso falar num inspirado traço de “line drawing” que compõem os seus contos: as suas personagens, o seu enredo, o seu desfecho; bem como a inevitabilidade do que acontece, estão ausentes desta obra. Nela encontramos um cheiro de modernidade no facto de ser uma (ainda inocente) novela policial, um género que começava a dar os primeiros passos, mas somos confrontados com um ambiente de excessos, de contradições, de fraquejar que nos lembram alguns atormentados heróis românticos de vida dissoluta, mais do que as personagens dostoievskianas divididas pelas dúvidas sobre o em e o mal e pela procura de absoluto.

Os espíritos mais mesquinhos afirmavam que o ilustre conde via na pessoa de um pobre juiz de instrução criminal, de origem humilde, um mero companheiro de bebedeiras.”
(…)
“Teriam dito algo mais se soubessem como é suave, débil e submissa a natureza do conde e como a minha é forte e obstinada. E teriam acrescentado ainda mais se estivessem ao corrente de quanto aquele homem fraco me estimava e quão escassa era a minha simpatia por ele”.
(…)
“De quantas desgraças me teria livrado e que bem teria feito ao meu amigo se, naquela tarde, eu tivesse tido a coragem de voltar atrás” (…)


O mote está lançado: não há lugar a subtileza, nem contenção nesta novela.
As descrições e a linguagem são ricas e pictóricas e a sensualidade lasciva abunda. O trágico e o decadente andam de mão dada. Tudo parece excessivo: o que se vê, o que se sente, o que se diz, o que se faz.

“Decorrida uma hora estávamos a comer à volta de grandes mesas. Para quem se achava habituado às teias de aranha, à sujidade da mansão e aos gritos dos ciganos, aquela multidão que rompia com as suas conversas fúteis o silêncio das divisões solitárias, era motivo de espanto.”
(…)
“Eu detestava aquela multidão que, com frívola curiosidade, observava os traços de declínio da minguante fortuna dos Karnieiev.”
(…)
“ Sentia o exagero de tal oratória, que despertava o riso dos circunstantes. Apesar do champanhe que havia bebido, não parecia alegre; exibia a mesma palidez que revelara na igreja, o mesmo terror nos olhos”.

Estes pequenos excertos da novela mostram como estamos longe do sóbrio Theckov a que a leitura dos contos nos habituou. Este é certamente um Tcheckov mais novo, mais exuberante, com uma linguagem adjectivada, rica e intensa que quase toca o exagero, numa novela com toda a “alma” russa possível (camponeses pobres, aristocracia à beira da ruína, meios pequenos e mesquinhos) e que se lê de um folgo, sempre à espera de saber o que vai acontecer de seguida, tal como nos bons policiais. Com a inocência dos primeiros passos que se dão neste género policial, o final reserva-nos uma surpresa, que posteriormente fez história.

(JCD)

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© José Pacheco Pereira
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