ABRUPTO

30.5.05


APRENDENDO COM EÇA DE QUEIRÓS

"A tua ideia de fundar um jornal é daninha e execrável. Lançando, e em formato rico, com telegramas e crónicas, uma outra «dessas folhas impressas que aparecem todas as manhãs», como diz tão assustada e pudicamente o arcebispo de Paris, tu vais concorrer para que no teu tempo e na tua terra se aligeirem mais os juízos ligeiros, se exacerbe mais a vaidade, e se endureça mais a intolerância. juízos ligeiros, vaidade, intolerância – eis três negros pecados sociais que, moralmente, matam uma sociedade! E tu alegremente te preparas para os atiçar.

Inconsciente como uma peste, espalhas sobre is almas a morte. já decerto o Diabo está atirando mais brasa para debaixo da caldeira de pez em que, depois do julgamento, recozerás e ganirás, meu Bento e meu réprobo! Não penses que, moralista amargo, exagero, como qualquer S. João Crisóstomo. Considera antes como foi incontestavelmente a Imprensa, que, com a sua maneira superficial, leviana e atabalhoada de tudo afirmar, de tudo julgar, mais enraizou no nosso tempo o funesto hábito dos juízos ligeiros. Em todos os séculos decerto se improvisaram estouvadamente opiniões: o Grego era inconsiderado e gárrulo, já Moisés, no longo deserto, sofria com o murmurar variável dos Hebreus; mas nunca, como no nosso século apressado, essa improvisação impudente se tornou a operação natural do entendimento. Com excepção de alguns filósofos escravizados pelo método, e de alguns devotos roídos pelo escrúpulo, todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente, do penoso trabalho de verificar.

É com impressões fluidas que formamos as nossas maciças conclusões. Para julgar em política o facto mais complexo, largamente nos contentamos com um boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Para apreciar em literatura o livro mais profundo, atulhado de ideias novas, que o amor de extensos anos fortemente encadeou – apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo escurecedor do charuto. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos «Este é uma besta! Aquele é um maroto!» Para proclamar «É um génio!» ou «É um santo!» oferecemos uma reSistência mais considerada. Mas ainda assim, quando uma boa digestão ou a macia luz de um céu de Maio nos inclinam à benevolência, também concedemos bizarramente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa ou a auréola, e aí empurramos para a popularidade um maganão enfeitado de louros ou nimbado de raios.

Assim passamos o nosso bendito dia a estampar rótulos definitivos no dorso dos homens e das coisas. Não há acção individual ou colectiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos a promulgar rotundamente uma opinião bojuda. E a opinião tem sempre, e apenas, por base aquele pequenino lado do facto, do homem, da obra, que perpassou num relance ante os nossos olhos escorregadios e fortuitos. Por um gesto julgamos um carácter: por um carácter avaliamos um povo. "

Etiquetas:


(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]