O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: O DEBATE FRANCÊS DA CONSTITUIÇÃO EUROPEIA
Em qualquer debate existe ou deveria existir uma lógica de preparação prévia para o confronto argumentativo. Deste ponto de vista, o debate sobre o Tratado Constitucional que se pensa estar a existir em França não o é. No máximo, é um pseudo debate em que, por definição, quem tem o papel de argumentar em sentido negativo está sempre mais à vontade. Os elementos desta situação podem ser a alimentação do medo no receptor, a introdução de elementos de confusão independentemente da sua ligação ou pertinência com o assunto do debate, a excessiva simplificação da lógica argumentativa com o objectivo expresso de vedar a quem ouve a totalidade ou quase totalidade dos elementos de ponderação e, por vezes, a proclamação de inverdades que, ao não serem desmentidas com clareza, se tornam argumentos voando no ar das sérias conversas de rua ou mesmo das seríssimas tertúlias em casa. Para fins de consolidação pode ser acrescentado um etc. a esta enumeração.
É verdade que, em teoria, todos os elementos utilizados por uma argumentação também podem ser utilizados pela outra. Mas só em teoria, porque a lógica diz-nos que é muito mais simples destruir do que construir. Note-se que no caso específico deste texto os termos destruir e construir são neutros. Nem são positivos nem negativos, são, no máximo, operacionais. Tudo parece depender do contexto e da mensagem que cada atitude argumentativa pretende fazer valer. E neste sentido, em França, a situação parece bem particular porque tal como penso ser o caso de outros países, existe um profundo e generalizado desconhecimento do tema em discussão.
O exemplo caricato de um argumento agitado ontem num debate televisivo por um dos defensores mais mediáticos do Não – Philippe de Villiers - foi o de dizer que com o Tratado Constitucional o direito comunitário derivado passa a ter a primazia jurídica sobre o direito interno (como se se pudesse subentender que ainda não o tem então !!). O problema disto é que, apesar das tentativas de desmentir esta alegação, os oponentes no debate, defensores do Sim, não o conseguiram fazer de forma eficaz. De facto, os defensores do Sim encontram-se na posição de ter de ensinar o Tratado Constitucional aos franceses e ao mesmo tempo debater das suas virtudes ou defeitos. Por isso é que se torna fácil admitir a dificuldade do debate sobre o Tratado Constitucional em França. Logicamente, esta conclusão só verifica elementos endógenos ao próprio debate. Se a isto acrescentássemos o contexto político em França a análise deveria ser muito mais complexa. Estarão os defensores do Sim desculpados? Um grande NÃO é a resposta. Mais do que carregar os defensores do Não com alguma falta de honestidade intelectual, é necessário salientar a impreparação dos defensores do Sim. Os defensores do Não citam, bem ou mal, com pertinência ou não, uma quantidade notável de artigos de Constituição europeia. Os defensores do Sim nem a Constituição parecem trazer para os debates. Pelo menos não se dão ao trabalho de rebater de forma clara as interpretações feitas pelos defensores do Não. Escondem-se atrás do biombo da arrogância intelectual que consiste em dizer que a interpretação em causa é uma idiotice. Em consequência nem deve ser tida em conta. O problema é que para quem ouve, a mensagem que ficou foi a de um argumento sem resposta com situação agravante do tipo de atitude de quem não quis responder. Mas ainda mais importante ainda, os defensores «oficiais» do Não deixam transparecer uma visão errada das preocupações, legítimas aliás, que levanta o Tratado Constitucional para os franceses. No mesmo debate em que participava Villiers, Max Gallo e Jean-François Copé estava o Presidente do Parlamento Europeu Josep Borrell. Borrell por mais do que uma vez deixou transparecer a estupefacção com o tipo de desenvolvimentos do debate. Deve ser dito que este exemplo não é único. Basta acompanhar o processo mediático do referendo em França para que uma lista possa ser elaborada. Num país como este, uma tal deriva, é uma tristeza politica e social mas é sobretudo uma tristeza intelectual.
Seja como for, sejamos a favor ou contra o Tratado Constitucional, a verdade é que para bem dos debates parece necessária alguma preparação. Sobretudo se se trata de um processo cuja realização implica uma mediatização. Desde Weber que sabemos ser relativamente simples de fazer frutificar o modernamente chamado populismo. O problema é que no final de todas as contas quem acaba por perder são os créditos de confiança das classes políticas e também das elites em relação à sustentação popular que pretendem conservar. A longo prazo o povo acaba por contradizer Weber.