ABRUPTO

24.4.05


NOTAS PROVENÇAIS: SCHELLING, STEINER E RATZINGER

1. O livro tem um título convidativo Dix Raisons (Possibles) à la Tristesse de Pensée e o texto bilingue ajudava à recusa que tenho de ler traduções quando posso ler o original. Nas páginas pares inglês, nas ímpares, francês. Depois comecei a lê-lo, do lado inglês e muitas vezes entrava sem me aperceber na página seguinte em francês, tradução da anterior, sem dar por ela que estava a ler a mesma página. Uma, duas, três vezes. Atribui esse deslize ao cansaço, às circunstâncias, ao sono, à ligeireza das leituras de viagem. Depois desconfiei que o mal vinha do texto. Só me apercebia quando se repetia o mesmo exemplo e a mesma citação. Era um livro de Steiner, o mestre, mas parecia mais uma redacção do que um ensaio.

2. A citação que dá o mote ao livro é daquelas que nos atiram com força para o texto, com a força de uma frase que já diz muito e ajuda a dizer mais. Para o amador destas “ideias” empurrava de imediato para o texto e para a leitura compulsiva. Era um frase de Schelling citada duplamente no original alemão e traduzida em francês:

“Tal é a tristeza inseparável de toda a vida finita (…) uma tristeza (…) que nunca se torna efectiva e serve para dar a alegria eterna de a ultrapassar. De lá vem o véu de aflição que se estende sobre toda a natureza, a melancolia profunda e inalterável de toda a vida”

( A frase completa de Schelling, sem os cortes, é esta :

"Dieß ist die allem endlichen Leben anklebende Traurigkeit, und wenn auch in Gott eine wenigstens beziehungsweise unabhängige Bedingung ist, so ist in ihm selber ein Quell der Traurigkeit ... Daher der Schleier der Schwermuth, der über die ganze Natur ausgebreitet ist, die tiefe unzerstörliche Melancholie alles Lebens." *)

3. Steiner arranca bem, usando no meio do texto inglês daquela perfeição “teórica” do alemão, que na filosofia é a única que rivaliza com o grego e o latim clássico na capacidade conceptual e neste caso, quase afectiva (devia haver e há certamente uma palavra alemã melhor para este “quase afectiva”…). Steiner quer dar as razões “possíveis” para esta “Traurigkeit”, para esta “tristitia” e depois perde-se num texto superficial, muito menos “pensado” do que centenas de páginas da filosofia ocidental e milhares de páginas de literatura.

4. O pensamento é “triste” porque é raro, é incompleto, é raras vezes consequente, não atinge a verdade, é pouco “útil”, não funda uma moral? E depois? O pensamento é tudo isso, mas basta uma linha para o sabermos. Mas é “triste” por isso? É “triste” porque não atinge a verdade? Se nos ficarmos pela psicologia comum chega, mas então a fé dos que a têm, a crença dos que acreditam? Essa não é “triste” pela sua natureza. Pode-se sempre dizer que não é pensamento, mas na definição que usa Steiner, ou melhor, na descrição que usa Steiner, a do pensamento como fluxo contínuo e imparável de uma conversa connosco próprios (e uma das melhores partes deste texto é esta descrição empírica da impossibilidade do silêncio interior), a fé dos que a têm, é “pensar”.

5. Lendo Steiner no meio dos debates papais, sabendo que a questão de Schelling vem de D’Alembert, do “malheur de l’Existence”, Ratzinger meteu-se no meio. Na verdade, quando D’Alembert e Schelling falam da “Melancholie alles Lebens”, falam da crise da personalidade no mundo em que o saber se defronta com a sua solidão terrena, num mundo em que Deus não está presente a não ser, no limite, como uma dúvida, como uma possibilidade. Ratzinger deu o outro lado da mesma questão, quando escreveu sobre Sakharov (cito em francês do Le Monde) e criticou a “liberdade” nascida do iluminismo, a mesma que gera a “melancolia”:

"La liberté ne garde sa dignité que si elle reste reliée à son fondement et à sa mission éthiques. Elle a besoin d'un contenu communautaire que nous pourrions définir comme la garantie des droits de l'homme. Pour l'exprimer autrement, le concept de liberté requiert d'être complété par deux autres concepts : le droit et le bien (...).
Sakharov ne cessa de vivre dramatiquement la défaillance de l'Occident. Il a vu que la liberté y est entendue de façon égoïste et superficielle. On ne peut pas vouloir la liberté pour soi seul. La liberté est indivisible et doit être vue comme une mission pour toute l'humanité. On ne peut l'avoir sans sacrifices et renoncements (...).
Des institutions ne peuvent se maintenir et être efficaces sans des convictions éthiques communes. Or celles-ci ne peuvent pas provenir d'une raison purement empirique. -Dans la démocratie moderne, les décisions de la majorité ne resteront elles-mêmes humaines et raisonnables que tant qu'elles présupposeront l'existence d'un sens humanitaire fondamental (...)."

6. Eu não digo que esta resposta de Ratzinger elimine o problema ou seja a resposta ao problema, mas sim que é parte do problema e Steiner ilude-a para simplificar o texto. Ora a descrença e a crença estão no cerne da “tristeza” como aliás não era preciso ir mais longe do que a própria frase de Schelling já dizia: “a tristeza inseparável da vida finita”. Está lá o “finito” e talvez a resposta mais simples seja que a “tristeza” do pensamento venha da finitude da vida para quem não crê. Ou seja, da recusa do pensamento em extinguir-se, em morrer, em parar de pensar.

7. Mesmo nos próprios termos “descrentes” de Steiner (que são também os meus, ou seja, são também os mesmos em que eu os coloco nesse diálogo interior do pensar), a “tristeza” não é inevitável. A verdade é impossível, mas não é impossível procurar a verdade. Nada sabemos, o nómeno foge-nos no véu do fenómeno mesmo quando pensamos que sabemos, e depois? O jogo do saber não pode ser “feliz”, não pode acomodar-nos, mesmo no erro, dando-nos uma felicidade psicológica na descoberta? Kuhn fez todo um livro a mostrar como o sistema ptolomaico resistiu como “ciência” porque entre outras coisas explorava o logro psicológico de que, por via da ciência, dominamos o mundo. Sabemos que o Sol não anda à volta da terra, mas também sabemos que a terra não anda à volta do Sol exactamente da forma que Galileu ou Newton pensavam. Hoje achamos que a terra anda à volta do Sol como Einstein pensava. Amanhã será diferente. Mas isto faz-nos “infelizes” porque nos mostra o carácter inatingível da verdade, a começar por aquela que pensamos ter instrumentos para compreender? Duvido.

8. Existe um carácter vital no pensar, Steiner dixit. Mas desde quando o pensamento produz tristeza a não ser neste mundo dominado pela “vivência” romântica da incompletude psicológica? Nos termos de Steiner grande parte do pensamento antigo, greco-romano por exemplo, não é explicável porque não tem esta “tristeza”, no fundo tão moderna e recente, no seu âmago. A partir de S. Agostinho, eu percebo estes termos, mas eles não são os de Platão e Aristóteles. Platão podia pensar que estavamos condenados ao erro, mas não à "tristeza".

Estas são algumas notas que explicam porque me parece muito débil este último texto de Steiner. Não avança com questões ao problema que coloca, o que seria de menos se avançasse com o problema. Nem uma coisa, nem outra.

* Tradução sugerida por Vasco Graça Moura do conjunto da frase:

"Esta é a tristeza ligada a toda a vida finita, e ainda que em Deus esteja uma condição independente pelo menos a tal respeito, também está nele mesmo uma fonte da tristeza... Daí o véu de melancolia que se estende sobre toda a Natureza, a funda melancolia indestrutível de toda a vida."

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© José Pacheco Pereira
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