ABRUPTO

7.4.05


NO MURO DAS LAMENTAÇÕES

Quem lida com a Igreja Católica Apostólica Romana e se esquece que está a lidar com uma instituição antiga, uma das raríssimas instituições que merece o nome de antiga, engana-se ou não percebe as linhas com que se cose ou é cosido. (A surpresa da derrota no referendo do aborto é um bom exemplo, se bem que de um evento apesar de tudo menor). No meio de todo este ruído que se agita à nossa volta a propósito da morte do papa, – e que daqui a uma semana será substituído por outro nos telejornais, exactamente com os mesmos mecanismos –, encontrei na Rua da Judiaria este texto que o Papa escreveu num papelinho para colocar no Muro das Lamentações em 26 de Março de 2000:

Deus dos nossos pais, que escolheste Abraão e os seus descendentes para trazer o Teu nome às nações: estamos profundamente tristes com o comportamento daqueles que, ao longo do curso da história, causaram sofrimento a estes teus filhos e, pedindo o teu perdão, manifestamos o desejo de nos comprometermos a uma irmandade genuína com o povo do convénio.

Não tem nem uma palavra a mais, nem a menos e diz exactamente o que quer dizer. Tudo é medido com uma dimensão que dificilmente encontramos à nossa volta. É ao mesmo tempo um texto religioso, – o acto de o colocar nas reentrâncias do Muro tem significado religioso –, uma mensagem religiosa e política e um programa de intenções. O Papa dirige-se ao “Deus dos nossos pais”, ou seja a Jeová; “que escolheste Abraão e os seus descendentes para trazer o Teu nome às nações”, ou seja os judeus, o povo eleito com uma missão divina; afirma a sua “tristeza” pelas perseguições aos judeus colocando-se do lado dos perseguidores, daí o pedido de “perdão” (a Jeová, a Deus); e manifestando o desejo ecuménico de uma “irmandade genuína” com o “povo do convénio”, de novo com os judeus assim descritos na sua qualidade bíblica. Os judeus são nomeados sempre pelas suas designações e funções bíblicas, acentuando o fundo teológico e histórico comum. Na terra, Jerusalém, em que Cristo foi morto, não há menção a Cristo, como se o Papa estivesse, de um modo ainda mais ancestral. virado apenas para as paredes do Templo de Salomão.

*
A propósito da sua nota sobre o modo como o Papa, pedindo perdão ao povo judeu pelas perseguições da História, em termos que mais parecem exprimir o desejo do restauro da unidade primordial da mesma fé, uma espécie de "regresso à casa comum", não resisto a deixar-lhe um belo texto de Santo Agostinho, no seu Comentário ao Evangelho de S. João (XVI, 3), que traduzo:

"A Pátria do Senhor é o Povo judeu.
Contempla a multidão dos judeus agora,
observa essa nação, dispersa pelo mundo, arrancada às suas raízes, olha para esses ramos, esmagados, cortados, lançados de um canto para o outro, ressequidos.
Na sua ferida, a oliveira selvagem teve o seu enxerto.
Vê a massa do povo judeu, o que te diz ele?
Esse que vós honrais, Esse que vós adorais, era nosso irmão!"


Agostinho escreveu este texto no momento histórico em que os judeus já levavam três séculos de diáspora forçada (após a queda de Jerusalém, em 70 d. C.), e em que se começava a adensar, no Estado romano legalmente cristianizado, a perseguição à religião irmã, suficientemente próxima nas suas características para se constituir rival para o cristianismo, e que, por isso, urgia diabolizar. Ao mesmo tempo, uma e outra religião empreendem um caminho teológico de reinterpretação dos textos que, avivando as diferenças, as colocou de costas voltadas pelos séculos afora.

Mas Agostinho escreveu este texto para ser ouvido, em homilia (comentário ao Evangelho), pelos fiéis cristãos que tinham Agostinho por pastor. O cristão é, pois, interpelado a corrigir a sua atitude em relação a "esse irmão mais velho" que era o judaísmo, como se vê pela pessoa e modo verbal usados. Não teria sido, decerto, a atitude mais comum por parte dos pastores da Igreja, como também não foi comum a atitude de João Paulo II. Mas a verdade do Espírito nem sempre fala pelo número dos que lhe invocam a autoridade.

Por vezes, na História da Igreja, temos umas centelhas cuja luz, brilhando, indicam o caminho a seguir, feito de tolerância, de reconhecimento pelo valor do outro, cuja diferença é uma riqueza, e não uma realidade a esmagar.
(Paula Barata Dias)

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]