ABRUPTO

4.2.05


SCRITTI VENETI: VASCO GRAÇA MOURA

canção de veneza à chuva

minha musa em veneza, ó vaporetta,
cortando a luz de nácar na aqua alta
ondulante dos sonhos, não te falta
um voo de gaivotas que arremeta,
entalado entre a ponte e as fachadas
do rialto, a pousar
nas gôndolas paradas,
nem um ventinho frio a arrepiar
o bando anil dos pombos indolentes,
nem a gente compacta a atravessar
as pranchas, devagar,
como nas procissões de penitentes.

tudo a oscilar aqui. o rosa foi
vermelho, o verde já se esboroou,
no ocre havia amarelo, desbotou
o azul que era mais forte. tudo rói
a humidade dos tempos e trespassa
memórias, inscrições,
o vão de cada praça,
as loggie dos palácios, as prisões,
as torres, os tijolos, as empenas,
as arcadas, os ódios, as paixões,
toadas e canções,
todalas almas grandes e pequenas.

só fica o arco-íris que se vidra
entre quinquilharias e murano,
a abastardar o coração urbano
que a multidão invade como a hidra.
afunda mais veneza a piolheira
a percorrer as ruas
que o tempo que se esgueira
ao sabor das correntes e das luas,
sedimentando em mito o esplendor
da cidade a nascer por entre as puas,
ao rés da espuma, em nuas
geometrias tépidas de cor.

mas as pedras que ao sol prendem a luz,
feitas agora máscaras cinzentas
por onde escorre a pel’ das águas lentas,
diluem-se na tarde que as reduz
ao frágil tremular do fim do dia.
são um espelho gasto
que em sombras embacia
um tempo que devora o próprio rasto.
talvez a noite ao vir depois reúna
ao seu hálito negro esse nefasto
silêncio que é o pasto
dos renques de luzeiros na laguna.

tu, quando as nuvens carregadas vês
na tempestade, e o raio e as casas juntas
que giorgione lá pôs, porque perguntas
quem era essa mulher cuja nudez
segura um filho ao colo e lhe dá leite
aquém da trovoada
e da cidade? eu sei-te
dizer apenas: não se sabe nada
do como, onde e porquê dessas figuras
de uma estranha presença indecifrada.
a chave não é dada
e apenas se pressentem desventuras.

canção, que a vaporetta a mim me leve
em seu contentamento.
veneza, à chuva, ao vento,
para já a afundar-se não se atreve.
o sol há-de voltar. por isso escreve.

(url)

© José Pacheco Pereira
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