ABRUPTO

7.2.05


NATUREZA MORTA CREPUSCULAR

Da esquerda para a direita: a mesma pilha de jornais e revistas, em cima a Revista de História das Ideias, sobre a pilha um disco de Haydn já ouvido, um jogo de computador antigo Command and Conquer Generals, um bilhete do metro do Porto que diz Andante, a mão esquerda, uma lupa, uma caneta, uma tesoura, um lápis, zips, uma reprodução de um quadro de Corot para colocar no Abrupto, um texto de um autor antigo que começa assim “Deixei de ter confiança, daí o silêncio”, outro texto com um fragmento de uma carta de Heloísa a Abelardo

Se efectivamente tenho de confessar a fraqueza do meu coração, em mim não encontro arrependimento que possa apaziguar Deus e sempre O acuso de grande crueldade para contigo. Rebelde à Sua vontade, não faço mais que ofendê-l'O com o murmúrio da minha indignação, em vez de tentar serená-l'O pela minha penitência. Pode falar-se de penitência, seja qual for o tratamento infligido ao corpo, quando a alma ainda mantém a vontade de pecar e arde nos mesmos e antigos desejos? É fácil, sem dúvida, confessar as suas faltas e acusar-se ou submeter até ao seu corpo a macerações externas; mas bem difícil é arrancar a sua alma aos desejos das mais doces volúpias.

, um “leitor” com um livro aberto de pedra, água, um telefone sem som, um dado viciado, uma pequena estação meteorológica com relógio –dezasseis e doze, dezoito graus dentro da sala, perto de mim, quinze graus lá ao fundo, lá fora oito – azul e branco do céu em frente, um cúmulo-nimbo ameaçador que se vai dissipando, verde das árvores mais escuro, o vermelho dos telhados mais tijolo, um ecrã com texto, os mesmos dois olhos, um rato, uma ligação Bluetooth desligada, a mão direita, algumas moléculas de laranja no ar.

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© José Pacheco Pereira
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