ABRUPTO

28.2.05


A INDÚSTRIA DO COMENTÁRIO

1. Há hoje uma indústria de falar / escrever sob a forma de comentário que faz parte das novas tecnologias e é, meus caros amigos e inimigos, uma “indústria de ponta”. É como essa outra tecnologia dos nossos dias a produção do humor, outra “indústria de ponta”, florescente em tempos deprimidos como os nossos. Como acontece numa sociedade industrial moderna, há fluxos entre os diferentes sectores de produção: da política tradicional para o comentário, da publicidade tradicional para o humor como publicidade, das artes do espectáculo para a política, da televisão para a indústria “cor-de-rosa” (outra indústria “de ponta”), da escrita bloguística para a escrita dos jornais. Em todos estes casos há também um vice-versa.

2. Eu faço parte da indústria de falar. Não só, mas também. Pertenço portanto a uma economia assente num mercado aberto onde os bens são escassos. Logo, na minha indústria, a competitividade é feroz e ainda bem. É o que ainda a faz de “ponta”, com todas as felizes ambiguidades do termo. A indústria agrega académicos, empresários, políticos no activo (os que esperam ir a votos no quadro de legítimas ambições) e interessados pela política, jornalistas, escritores, advogados, professores num estatuto de igualdade. Alguns académicos pensam que quando opinam têm regras diferentes dos empresários, mas enganam-se. Na indústria do comentário tudo se mede pela qualidade da opinião, que é obviamente reforçada pelas competências a montante e a jusante, mas não é por elas legitimada. O mesmo tipo de ilusões existe nos políticos e nos jornalistas, mas opinião mede-se contra opinião.

3. Sendo uma indústria altamente competitiva, ainda tem vindo a tornar-se mais “selva” com o alargamento do espaço público com os blogues, que democratiza o acesso ao mercado e acentua ainda mais a competitividade. No mercado ela assenta na qualidade do falar que se mede por dois parâmetros: a audiência e a influência, que podem não ser coincidentes. Há produtos com audiência que não têm influência e vice-versa. É interessante analisar a mesma divergência na blogosfera, onde ela pode ser comparada pela diferença entre os índices de leitura e as citações.

4. Os ludditas querem manter uma closed shop para o comentário (quotas, “contraditório”, elocução apenas partidária, vozes oficiosas, lógica institucional) e reflectem no fundo a sua perda de mercado de audiência e de influência. Há ludditas no jornalismo, nas universidades, nos partidos políticos, nos empresários. Têm a nostalgia de um mundo ordenado, de que eles são ou os produtores da ordem ou os polícias da desordem. Divulgam a ideia que a indústria do comentário produz perversões, subversões e perturbações, em suma, inutilidades perigosas que nenhuma falta fazem. É falso: a indústria do comentário produz controvérsia, racionalidade, e às vezes, imaginação e um olhar fresco. Não é tudo, nem pretende ser tudo, nem se substitui a outras indústrias e actividades cívicas, mas é uma parte indissociável do espaço público da democracia, que sem “opinião” respiraria com dificuldade.

(Continua)

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© José Pacheco Pereira
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